por Diego Caleiro, 2012*
Os humanos tem sido péssimos designers de paraísos, utopias e demais cenários em que há o máximo do que há de bom e o mínimo do que há de ruim. Em algumas fontes a respeito de transhumanismo, bem como nesse texto, começamos a resolver esse problema.
As sociedades humanas até hoje podem ser distinguidas entre aquelas que colocaram o paraíso como um tempo ancestral, passado, e aquelas que enxergam o paraíso num momento distante e futuro, sendo o simbolismo mais comum a ascensão aos céus na vida após a morte. Antes de fazermos uma análise mais racional sobre o encaminhamento futuro do destino dos humanos atuais, faremos uma incursão nas intuições que regaram os desejos de paraíso de diversas sociedades. Compreender como diferentes sociedades e religiões pensaram suas ideias sobre paraísos é a melhor maneira de compreendermos quais erros poderiam ser cometidos numa tentativa real de chegarmos a um bom local fazendo uso das tecnologias vindouras. Examinemos por tanto essas concepções desde a antiguidade.
(A) O mais antigo paraíso do qual temos notícia (De Masi 2002), encontrado numa tábua em escrita cuneiforme, é chamado de Dilmun, e descrito como um lugar sem doenças e sem violência, isto é, determinado por ausências de alguns males que assolavam, à época, os seres humanos. (B) O termo “paraíso” significava parque, jardim, ou pomar, termos que usamos para designar locais em geral seguros, repletos de alimentos, e capazes de nos deixar em um estado de tranquilidade. (C) Uma das descrições do paraíso do povo de Israel trata dos mortos em conflitos políticos, religiosos e étnicos. Celebra Isaías: “Reviverão teus Mortos” […] “Os meus caídos ressurgirão, despertarão e exultarão aqueles que habitavam no pó”.
Eventualmente o paraíso se torna (D) o máximo de eficiência dentro do contexto social vivido pelos hebreus. Pensa-se aí em magníficas produções agrícolas prescindindo quase inteiramente de trabalho: em TALMUD, Kethuboth IIIb, “O Santo […] soprará sobre as espigas e fará com que caiam os grãos. Então os homens andarão pelos campos e colherão um punhado com o qual se nutrirão a si e a suas famílias… […] neste mundo é preciso colher e espremer com esforço [mas naquele] bastará arrancar um galho da videira, carregá-lo numa carroça ou num barco e colocá-lo num canto da casa e ele fornecerá (vinho) à vontade, como se fosse um grande barril”.
Os paraísos até aqui tratados preenchem uma ausência, recuperam uma perda, e no caso (D) aceleram e maximizam a produção sem esforço, isto é, aumentam a eficiência da produção do valor social mais contundente à época (o valor agrícola). Continuaremos agora examinando outros povos e sociedades que também encontram em seus paraísos retratos escrachados, por vezes pitorescos e afirmativamente ridículos, que refletem aquilo que em suas sociedades mais faltava, ou o que mais determinava status em seu tempo. (E) No paraíso cristão prevalece o ócio, o próprio corpo humano ascende, em sua forma carnal, mas segundo Agostinho, “repousaremos e veremos, veremos e amaremos, amaremos e louvaremos no fim e sem fim”. Tudo isso acontecerá em versões atléticas de nossos corpos de trinta anos, a idade consagrada do Cristo.
Dos paraísos mais interessantes de se examinar está (F), aquele de Irineu de Lyon, que diz que nascerão vinhedos com dez mil videiras, cada qual com dez mil vinhas, cada qual com dez mil latadas; que cada latada terá dez mil ramos e que cada ramo terá dez mil cachos. Cada cacho possuirá dez mil bagos de uva e cada cacho espremido dará 25 metretas de vinho. Ou seja, haverá aproximadamente 2,5 x 1030 metretas de vinho de cada videira, ou mais do que o número de átomos num corpo humano médio.
(G) Também o paraíso muçulmano nos traz perspectiva interessante: possuidor de “Nádegas de uma milha e orgasmos de um século” cumpre o papel de inversão da vida terrena, já visto anteriormente em âmbito sexual/relacional. No paraíso islâmico, reverte-se o deserto, um infinito jardim, sempre regado de boas chuvas, frequentes, clima ameno e, como já de costume nos paraísos, rios e lagos de vinho, e também mel e leite. Os habitantes serão cobertos de pedras e pérolas e assistirão, em tela plana, o sofrimento e a angústia dos demais (schadenfreüd). As Huri, mulheres do paraíso que cortejam os homens que ascendem, são eternas virgens, readquirindo a virgindade perdida a cada vez que a perdem, num eterno retorno de gozos sultânicos e triunfais. Rege parte da lenda que simplesmente por olhar um fruto você poderá saboreá-lo, e se este não mais lhe aprouver, não há problema, pois o sabor transforma-se sozinho em sua boca, sem necessidade de nenhum esforço. Como em quase todos os casos anteriores, aqui o trabalho está erradicado. (H) No paraíso luterano, diz-se que até as mais desprezíveis criaturas, como as vespas e as baratas, terão maravilhosa fragrância, e serão de delicioso sabor. (I) O paraíso Calvinista é praticamente a realização de um comunismo utópico fraternal: não haverá leis, distinções de classe, governo, diferença entre servo e patrão, todos serão iguais.
(J) O paraíso da era industrial também é industrializado, quando deixa de ser ideal do Homem passar a eternidade deitado numa nuvem, tocando harpas celestes de maneira tonal e em harmonia simples. Dentro da época protestante, o labor se mantém nos céus, com a diferença de que é garantido que todo esforço ou trabalho é uma alegria. Famosamente a ética protestante retira a condição anti-terrena que viemos vendo aqui nos paraísos de diversas civilizações. Enquanto nos paraísos anteriores a totalidade do modo de vida dos indivíduos é modificado para seu contrário, ao ingressar no paraíso, agora teremos uma concepção de mais do mesmo, porém com um signo positivo associado a esse mesmo. Encontraremos nos escritos de Isaac Taylor, por exemplo, uma exaltação do trabalho como glorioso, um prazer, e o céu sendo praticamente um posto cívico que interage e auxilia as pessoas que se mantém na esfera terrena.
Contra a versão formal dos paraísos acima descritos, todos emprestando suas características de desejos de curto e médio prazo correlatos à dinâmica social e abundância de recursos de seus construtores, teremos que buscar um paraíso cujas metáforas não se baseiem tanto em nuances de época, características menores, e carências simplistas que moveram a criação de todos os paraísos acima descritos. Para começarmos a pensar a respeito disso, vejamos o entendimento de paraíso de um dos mais imponentes transhumanistas de nossa geração, Eliezer Yudkowsky, falando sobre a possibilidade de que acabemos num bom lugar para se viver, numa eutopia:
Nenhum autor parece ter sido bem sucedido em construir uma utopia que o valha. Quando estão tentando construir a imagem de quão maravilhoso e fascinante o mundo poderia ser, se ao menos nós pudéssemos ser todos Marxistas, ou Randianos, ou deixar os filósofos serem reis… eles tentam descrever o resultado como reconfortante e seguro.
[…] Pode-se considerar, em particular, a observação de Timothy Ferris:
‘Qual é o oposto de felicidade? Tristeza? Não. Assim como amor e ódio são dois lados da mesma moeda, também o são a felicidade e a tristeza. Chorar de felicidade é uma ilustração perfeita disso. O oposto de amor é a indiferença, e o oposto da felicidade – cá esta o truque – é o tédio.’
A questão que você deveria estar se perguntando não é “O que eu quero?” ou “Quais são meus objetivos?” mas “O que me excitaria?”.
Lembre-se – Tédio é o inimigo, não uma “falha” abstrata.
A Utopia é segura, sem surpresas e boba.
A Eutopia é assustadora.
Não estou falando aqui de usar meios maléficos para um bom fim, estou falando dos resultados eles mesmos. Essa é a relação adequada entre Futuro e Passado quando as coisas saíram bem, como nós saberíamos pela história se realmente tivessemo-la vivido, ao invés de olhar para trás com o benefício do olhar retrospectivo.
– Less Wrong, Eutopia is Scary
Para Yudkowsky, assim como o mundo atual, com tudo o que possui de melhor sobre o mundo de Benjamin Franklin, ainda assim assustaria Benjamin – e da mesma maneira devemos pensar nossa Eutopia – sua proposta é pensar um mundo que fosse tão chocante para nós quanto o mundo atual pareceria a Benjamin Franklin; um mundo em que seja possível reconhecer a melhora, mas que seja assustador; um mundo que não foi feito a partir de nós, indivíduos particulares, não foi feito para se encaixar em nós, como os paraísos que até hoje foram pensados, e com os quais nos defrontamos no início desse texto.
Ao contrário, ele se propõe a pensar um paraíso no qual ele se sinta fora do lugar, fora de sua zona de conforto, mas que ainda assim seja um lugar melhor do que o mundo em que vivemos:
E então, quando eu podia pensar numa boa ideia que ofendesse minha sensibilidade, eu a adicionava. O objetivo sendo – sem jamais deliberadamente fazer o futuro pior – fazê-lo um lugar no qual eu pudesse estar o mais chocado possível sobre que aquela era, afinal, a forma que as coisas haviam tomado.
Livrar-se de livros-texto, por exemplo – postular que falar sobre ciência em público é socialmente inaceitável, pela mesma razão que você não diz para alguém vendo um filme que o vilão morre no final. Um mundo que rejeitasse minhas concepções da ciência como um bem público da humanidade.
Então eu adicionei essas ideias desconfortáveis umas às outras…
…e, ao menos na minha imaginação, ele funcionava melhor do que qualquer tentativa que eu fizera de visualizar uma proposta séria.
Minhas propostas sérias haviam todas sido sóbrias e seguras e sãs, tudo voluntário, com placas de saída devidamente sinalizadas, e todo tipo de controle de volume para prevenir que qualquer coisa se tornasse muito alta e acordar os vizinhos. Nada muito absurdo, propostas que não assustariam os nervosos, contendo o mínimo possível de algo que causasse que alguém fizesse uma bagunça.
Esse mundo era ridículo, e ia acordar os vizinhos.
– Yudkowsky, opus cit.
Seja através de tecnologias transhumanistas, que modificam o corpo e a mente, seja através do uso de uma inteligência artificial generalista, temos de ter um mínimo de concepção de qual é o futuro para o qual queremos nos dirigir se vamos tentar esforços nessa direção, e até aqui estamos tendo uma lição sobre que tipos de pensamento não devem ser usados na concepção de um bom lugar para se viver, de um bom resultado dos esforços humanos.
Nosso entendimento do paraíso vai progredindo conforme compreendemos como o paraíso não deve ser. Vimos até aqui que ele não deve ser o inverso evolutivo da realidade terrena de seus criadores, como o paraíso de diversas religiões e crenças. Também vimos que não deve ser pautado nos desejos de um indivíduo, em como ele se sentiria bem, como no exemplo de Benjamin Franklin.
Temos então duas lições de moral até agora sobre nosso paraíso planejado, o futuro possível para o qual devemos mover nossos esforços: realidade invertida não é paraíso, e paraíso não é um lugar onde me sentiria quentinho e confortável, mas um lugar que iria me assustar por suas virtudes.
Quanta diversão há de haver no paraíso? Certamente muita diversão, incontavelmente mais do que a que um humano atual teria exercitando os hábitos de tocar harpas eternamente. Devemos estabelecer um limiar mínimo de diversão que vale a pena ser considerado: um palácio dentro de uma nebulosa habitado por todos aqueles que amamos, retirado-lhes todos defeitos que nos incomodam, onde ninguém envelhece ou adoece da mente ou do corpo, e todos podem instantaneamente tomar a forma que desejarem por 10 minutos.
Nossas três lições até aqui foram: realidade invertida não é paraíso; e paraíso não é um lugar onde me sentiria quentinho e confortável, mas um lugar que ia assustar por suas virtudes; se uma ideia não for ao menos tão desejável quando um palácio dentro de uma nebulosa, não vale a pena considerá-la como lugar para o qual dirigiríamos nossos esforços.
Agora estamos armados para começar a pensar numa teoria da felicidade, que vai lançar as bases a partir das quais poderemos pensar os tipos de futuros desejáveis para os quais podemos nos dirigir, e como encontrá-los. Esses temas já foram pensados, parcialmente por David Pearce, Nick Bostrom e Eliezer Yudkowsky, e em breve teremos traduções/reflexões sobre o mundo que quisermos criar aqui também.
Notas
* Texto revisado por Lauro Edison.