Razão: Uma Visão Intuitiva — Parte II: Razão & Consciência

por Lauro Edison *, 2012 (Ler Parte I)

 

Razão: faculdade dos seres conscientes de conceber, fazendo inferências a partir de representações mentais, meios eficientes para atingir os próprios objetivos.

O que mais provavelmente incomodaria certos filósofos, cientistas e pensadores, na definição acima, é o quanto ela parece obsoleta. É claro que eu preferiria dizer “neoclássica” ou algo assim. Mas vejamos. Talvez fizesse sentido, diriam eles, ser assim tão tacanho até o século XIX. Mas depois da revolução da computação e ainda mais hoje, no auge da Inteligência Artificial, ficou claro que a mente ou consciência, seja o que for, é um “postulado” totalmente desnecessário à ideia de racionalidade. Então por que incluir estes termos mentalistas ideologicamente carregados como “consciência”, “conceber” e “representações”? Aonde se quer chegar? Seria melhor uma definição análoga, mas neutra, ao estilo de:

Razão*: capacidade dos agentes de elaborar, fazendo inferências lógicas a partir de informações disponíveis, estratégias eficientes para atingir metas.

E que tal?

Razão**: potencial dos sistemas autônomos de calcular, executando operações lógicas sobre dados de base, algoritmos eficientes para solucionar problemas.

Bem, de certo modo a escolha é sua. Espero ter ficado claro que, com ou sem pressuposição de mentalidade, existe um tipo de semelhança estrutural entre as três definições: é sempre o potencial de uma entidade (consciente ou não, viva ou não) de organizar, através de algum tipo de procedimento lógico (seja raciocínio, seja cálculo) que parte de algum tipo de “matéria-prima” examinável (dados, informações, representações subjetivas), soluções para alguma espécie de tarefa (pretendida ou programada). Como se vai escolher entre as opções dos parênteses, para se definir “razão”, é em parte uma questão de gosto, em parte de fatos, razões e objetivos. Sem dúvida temos muito a examinar, a seguir. Mas o mais importante é que se saiba exatamente o que cada definição pretende sugerir, quer se a aceite, quer se a rejeite. É preciso evitar o quanto se possa ambiguidades importantes.

Considere, por exemplo, a expressão tão difundida “Inteligência Artificial”: embora cada um a interprete de um modo diferente, muitas vezes tudo se passa como se todos estivessem falando da mesma coisa. A expressão acaso sugere que os computadores possuem uma “inteligência” apenas artificial, talvez mesmo fictícia? Ou, em vez disso, os processos artificiais conseguiriam adquirir inteligência genuína, isto é, inteligência “como a nossa”? E, posto isso, qual é a suposta diferença entre a inteligência “fictícia” e a “genuína”? Nenhuma? Ou será que inteligência genuína é consciente, enquanto a artificial é mera imitação cega, mecânica e algorítmica, de nossa capacidade raciocinante? E não seria estupidez chamar de “imitação” uma forma de inteligência que, em muitos aspectos, é superior à nossa? É claro que tais perguntas apenas nos fazem retornar ao problema de como bem definir e (sobretudo) entender o termo “razão”. Mas, outra vez, é preciso não se deixar levar por ambiguidades.

Existe uma razão para todos nós, apesar de sabermos muito bem o que a razão é, ficarmos confusos sobre sua aplicabilidade a casos excêntricos como, por exemplo, o Deep Blue, o famoso computador enxadrista que venceu o campeão mundial Garry Kasparov em 1996; as aranhas capazes de tecer intrincadíssimas teias, ou os castores com suas represas; o processo cego e automático de seleção natural, capaz de produzir nada menos que as próprias aranhas e castores, além de olhos, cérebros e elefantes; e o caso fascinante e ilustrativo do programa de E. Gelertner 1, um software bastante elementar que, nos anos 60, conseguiu fornecer (descobrir?) uma outra prova para um teorema da geometria, relativo a triângulos isósceles:

O que todos estes casos têm em comum não deixa de ser óbvio: é a estranha propriedade de exibir seja comportamentos, seja procedimentos ou resultados inteligentes, ao mesmo tempo que – por tudo o que sabemos – dificilmente possuem alguma forma de consciência subjetiva 2 ou, o que é o mesmo, mentalidade. Dito sem rodeios: como eles podem ser tão racionais e nem mesmo saber o que estão fazendo, ou sequer sentir que existem? Teremos muito a nos aprofundar na direção de tal perplexidade.

Por hora, a razão para nossa confusão no uso da palavra “razão” é a seguinte: quando um conjunto de coisas ou propriedades sempre ocorrem juntas, é comum as percebermos ou as tratarmos como se fossem algo singular, unificado. E, assim, ganham também um só nome. O que chamamos de “janta”, por exemplo, é a associação de duas coisas: ser a segunda refeição principal do dia, e ser a refeição noturna; ao passo que “almoço” é a primeira refeição, e diurna. Isso funciona porque via de regra a primeira refeição é feita de dia e a segunda, à noite. Mas se você acorda no final da tarde e logo mais faz a refeição em família, a nomenclatura entra em colapso. É a sua primeira refeição. Mas é à noite. Isso é jantar ou é almoçar? A janta é “mais” a segunda refeição, ou “mais” a refeição noturna? Estará você almoçando e sua família jantando? Eis um caso imprevisto pela linguagem. Por razões bem parecidas, a maioria das pessoas que permanece acordada madrugada adentro continua achando estranha a ideia de que, após a meia-noite, já é “outro dia”. Ouvi de uma o protesto de que “o outro dia é só depois que eu acordar!”. É de se perdoar: durante milhões de anos o único conceito de “dia” disponível era dado pelo ciclo “clarear/escurecer”, que coincidia com o ciclo “acordar/dormir” – e agora que a luz elétrica nos permite 24 horas de sol, “acordar/dormir” é tudo o que restou da antiga intuição. Quer agradar as pessoas? Leve tais intuições a sério: na programação do Universal Channel os dias começam 6 da manhã “de um dia” e terminam 5:30 “do outro”. Confortável! E, apesar destas confusões, é claro que todo mundo também sabe exatamente o que é “dia”, de um modo geral, e como se relacionam as suas diversas acepções.

O ponto é: nem toda configuração possível merece um nome, até que ela comece a fazer diferença. Quando isto ocorre, podemos deixar como está ou, se for importante, podemos disputar palavras e criar novas delimitações que, pelo menos a princípio, serão artificiais. Assim surgem os termos técnicos e muitas gírias. Eventualmente, algumas se tornam palavras correntes.
Com a palavra “razão” não é diferente – a compreendemos bem o suficiente para dar sentido a toda a discussão anterior, com todas as suas sutilezas e variantes. Experimente fazer isso entre leigos com o conceito físico de “energia”! Nosso problema é que a tão familiar razão é também, não obstante, uma mistura de ideias que sempre andaram juntas, mas que agora começaram a aparecer separadas pela primeira vez. Como vimos, a era da Inteligência Artificial veio desafiar nossas intuições de um modo que não tem precedentes. Como resolver, em nossa linguagem, a situação destas estranhas versões parciais de (quase) racionalidade que estão cruzando o nosso caminho?

Como nos exemplos sobre a janta, todo exemplo de racionalidade que vimos durante milhões de anos trazia sempre as mesmas peças conjugadas. E não eram poucas. Era sempre a faculdade de uma pessoa, raciocinando a partir de suas crenças ou suposições, de pensar em maneiras viáveis de satisfazer seus desejos. Eis uma ideia de razão praticamente inata em nossa linhagem, tão forte quanto a ideia de “dia” baseada em “acordar/dormir”. Pense, por exemplo, na estratégia de vários Homo erectus caçando em grupo, há 1,5 milhões de anos ou, ainda antes, naquilo que se tornou a imagem paradigmática da racionalidade, através do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço: o uso, pelo Australopithecus afarensis, de ossos como ferramentas.

Mas o que acontece quando deparamos com o HAL 9000?

Sr. Amer: o sexto membro da tripulação não ficou preocupado com a hibernação, porque ele é a mais recente invenção em inteligência artificial: o computador HAL 9000, que pode reproduzir – embora especialistas prefiram usar o termo “mimetizar” – a maioria das atividades do cérebro humano, com muito mais velocidade e confiabilidade. Falamos com o computador HAL 9000 a quem todos chamam de “Hal”. Boa tarde, Hal. Como vão as coisas?

Hal: Boa tarde, Sr. Amer.

(…)

Sr. Amer: Conversando com o computador tem-se a impressão de que ele é capaz de sentimentos. Ao lhe perguntar sobre suas habilidades senti certo orgulho quando falou de sua precisão e perfeição. Acha que Hal tem emoções autênticas?

Frank: Ele age como se tivesse emoções autênticas. Mas ele foi programado assim para facilitar nossa interação. Se ele tem sentimentos reais ou não, é algo que ninguém sabe ao certo.

Nossas intuições ficam confusas diante do que parece ser apenas uma parte incompleta da ideia inteira. Voltando ao mundo real, Deep Blue parece ter algo como um objetivo (vencer a partida de xadrez) e atingi-lo através de algo como inferências lógicas (se tal movimento for realizado, isto é, tornado verdadeiro, também será verdadeiro o xeque-mate) baseadas em informação correta (as regras do xadrez, o andamento de uma partida, os movimentos do adversário). Parece muito com racionalidade. Bem como fazer a primeira refeição à noite parece muito com uma janta. Mas esta é uma janta genuína? Numa sexta-feira, seria aceita como um início canônico para o shabat judeu? Bem, talvez os rabinos, fundamentados nas escrituras ou na necessidade de impor costumes rígidos, decidissem que uma janta “genuína” precisa ser a segunda refeição do dia, além de noturna. E ponto final. Uma vez que uma palavra é indefinida para casos excêntricos, a motivação para regulamentar como usá-la nestes casos pode vir de qualquer lugar. É apenas uma questão de quais objetivos estão em jogo. Ainda assim, continuará sempre havendo um sentido óbvio em que fazer a primeira refeição à noite ainda será uma espécie de janta. E de almoço também, num sentido complementar! Mas palavras à parte, sabemos exatamente o que queremos dizer.

Talvez alguém com espírito demasiado sistemático argumente que, como “janta” sempre foi a conjunção de “segunda refeição” com “refeição noturna”, então qualquer subtração desse conjunto não seria uma janta, “por definição”. Mas definições são meramente linguísticas e, assim, passam ao largo do modo como os significados funcionam em nossas mentes (um modo que evoluiu muito antes da linguagem): se deparamos com uma inesperada versão incompleta de uma ideia que, não obstante, continua exibindo parte relevante do aspecto da ideia original, então o que sentimos é que estamos diante de uma versão parcial da ideia original, e não de uma outra ideia, pura e simplesmente. Mas enquanto nossas intuições logo apreendem quantas e quais diferenças estão em jogo, sem confusões, e isso basta para o entendimento; as palavras se tornam parcialmente adequadas de um modo confuso, que não identifica (e portanto não comunica) a estrutura exata dessa parcialidade.

Então nossa conversa terá que se complicar.
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A seguir: parte III Testando a Palavra

A racionalidade de Deep Blue é genuína? A seleção natural é racional? O que é essencial: informação, raciocínio, agência?

Notas

  1. * Texto original por Lauro Edison. Revisão feita por Leo Arruda.
  1. Citado em HOFSTADTER, DOUGLAS R. Gödel, Escher, Bach – Um Entrelaçamento de Mentes Brilhantes, p.662-663 (Editora UnB, 2001).
  2. Acredito que os castores sejam conscientes, mas não parece que a consciência deles esteja envolvida na construção de suas represas. E as aranhas, têm mente? Essa eu passo.