por Jonatas Müller, 2012*
Resumo: As éticas teórica e aplicada são definidas e explicadas. Argumenta-se que apenas a consciência tem relevância ética, de forma que o valor ético direto é a boa ou má qualidade do que é experienciado conscientemente. A produção de valor ético direto é a ativação de regiões cerebrais responsáveis pela geração de experiências boas ou ruins. Suas causas e sua variação entre os indivíduos devem ser previstas com probabilidades, em estudos experimentais, nos quais as leis da sociedade deveriam ser baseadas. A origem do valor ético e seu futuro são considerados, questões teóricas são resolvidas, e a teoria da decisão é explicada como um método para tomar decisões éticas racionalmente.
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O propósito da ética é definir o que é bom e ruim, e como tornar as coisas boas. Se pudéssemos fazer o mundo ideal e da forma como gostaríamos, o que essencialmente o faria ser dessa forma?
Ética teórica: o que é bom
Apenas a consciência parece possuir relevância ética direta. Coisas sem consciência só parecem ter importância indireta, por afetar a consciência. As coisas só têm sua existência aparente quando são experienciadas por sujeitos conscientes, e se não houvesse experiência consciente em qualquer momento, o universo seria como uma caixa preta fechada e desconhecida em que nada importaria.
Se a ética pertence apenas à consciência, o que é bom devem ser boas experiências conscientes. Em um dado momento temporal, tomado isoladamente, o que é bom é sentir-se bem. O que é ruim é sentir-se mal. Outras coisas terão relevância ética apenas na medida em que afetam estes estados conscientes em algum momento. E o valor ético de tais coisas será indireto, podendo ser reduzido à forma como podem eventualmente influenciar a qualidade da experiência consciente. As coisas que podem ter valor indireto ou instrumental são muitas.
Como exemplo vamos considerar a sobrevivência. Em um inferno eterno, sobreviver seria ruim, e em um paraíso eterno seria bom. O valor de sobrevivência é indireto porque varia em função da experiência consciente que gera, mesmo se no futuro. Outro exemplo de valor indireto é o aprendizado. O ato de aprender, por si só, pode gerar sentimentos bons ou ruins, e o conhecimento gerado pode ser útil, ou pode ser inútil, ou perigoso. Quando é útil, é por nos ajudar a tornar as coisas boas.
Ética aplicada: como tornar as coisas boas
Para determinar como tornar as coisas boas, o que em última instância se trata de produzir sentimentos bons, é necessário prever em grande escala o que eventualmente vai produzir sentimentos bons e ruins. Para animais e pessoas, o que produz diretamente esses sentimentos é a ativação de regiões cerebrais responsáveis por gerar sentimentos bons e ruins (Kringelbach 2009). Esta ativação constitui a produção direta de valor ético.
Como um evento irá ativar essas regiões cerebrais é algo que varia entre diferentes sujeitos, e até mesmo entre diferentes momentos de um mesmo indivíduo. Essa variação ocorre porque cérebros interpretam os acontecimentos de maneiras diferentes e, dependendo desta interpretação, as regiões cerebrais responsáveis por sentimentos bons ou ruins são mais ou menos ativadas. Esta interpretação individual pode ser imaginada como um labirinto cerebral pelo qual os estímulos passam, ativando diferentemente regiões de experiências boas ou ruins, dependendo dos caminhos particulares que tomam neste labirinto. Em certo sentido isto é verdade, e esses caminhos são as conexões entre os neurônios.
Não é fácil prever como essa interpretação pode variar entre os indivíduos. No entanto, aquilo que faz com que diferentes sujeitos se sintam bem ou mal tem uma certa semelhança, o que torna possível estudar e prever que algumas ocorrências provavelmente irão fazer os sujeitos se sentirem de uma determinada maneira. É possível então agir de forma a aumentar o que provavelmente irá causar sentimentos bons e reduzir o que provavelmente irá causar sentimentos ruins, fazendo das experiências conscientes melhores.
Devido à dificuldade em se prever como certos eventos irão afetar os sentimentos dos seres humanos ou animais, especialmente no futuro distante, a nossa ética aplicada deve usar probabilidades. Estudos experimentais são o caminho para encontrar essas probabilidades, descobrir similaridades entre diferentes sujeitos e situações e tornar possível estimar melhor o que vai acontecer. A ética aplicada deve ser desenvolvida de uma forma científica, com estudos e experimentos para prever o impacto ético de eventos e ações.
Uma vez que nós, indivíduos humanos, nem sempre podemos prever bem o que vai acontecer, nós nem sempre agimos favoravelmente, especialmente sem leis. Devido a isso, leis podem e devem existir para dirigir o nosso comportamento para resultados mais éticos. O valor ético dessas leis seria instrumental ou indireto, e elas devem ser encontradas com estudos e experimentos que demonstrem que elas teriam uma tendência geral de ser eticamente úteis.
A origem da capacidade ética e seu futuro
A nossa capacidade de experienciar conscientemente sentimentos bons e ruins foi moldada pela evolução (Darwin 1859). Ela serve para nos fazer buscar ou evitar psicologicamente coisas arbitrárias, e o modo como tais coisas nos fazem sentir bem ou mal ajudou os nossos antepassados a sobreviver e deixar descendentes. Estas associações arbitrárias poderiam ser diferentes, elas podem variar de um indivíduo para outro, e elas não têm importância ética direta. O que importa é que atualmente temos a capacidade de nos sentirmos bem ou mal, como quer que tenha surgido tal capacidade; e ser capaz de conscientemente se sentir desse jeito faz desses sentimentos bons ou ruins, independentemente do que a eles esteja associado.
Pode ser que no futuro nós consigamos construir modelos de cérebros avançados em computadores, e simular as regiões do cérebro responsáveis por gerar sentimentos bons e ruins. Estes modelos avançados nos permitiriam compreender como essas regiões funcionam, e quantificar melhor como nos sentimos em resposta a diversos eventos. Pode ser que o tamanho destas regiões tenha uma relação direta com a quantidade e intensidade de sentimentos positivos e negativos que elas produzem. Se sim, pode ser que a capacidade de diferentes animais de se sentir bem ou mal dependa aproximadamente do tamanho destas regiões em seus cérebros.
Intervenções para modificar diretamente estas regiões do cérebro podem ser imaginadas para os futuros seres sencientes. Sentimentos ruins poderiam ser reduzidos, e seria possível gerar sentimentos bons, ou valor ético, mesmo espontaneamente, sem qualquer causa externa necessariamente associada a eles. Nós costumamos apreciar sentimentos complexos produzidos por uma história de causas intrincadas, e a forma como isto nos faz sentir poderia também ser replicada. Se uma superinteligência senciente fosse criada, e tivesse a capacidade de alterar a sua própria mente, é provável que ela gerasse o seu próprio valor ético espontaneamente, sem quaisquer causas externas para depender.
Parece que temos, devido à nossa evolução passada, uma maior capacidade potencial de experienciar sentimentos ruins do que sentimentos bons. Os piores sentimentos que podemos imaginar parecem ser muito mais intensos do que os melhores sentimentos. Esta assimetria pode ser devida a uma maior pressão evolutiva para evitar perigos, tais como a morte ou ferimentos, do que para obter recompensas. No entanto, teoricamente deve ser possível produzir bons sentimentos com a mesma intensidade que os piores sentimentos negativos, em valor inverso.
Sentimentos bons e ruins não são maneiras simples de se sentir. Eles podem ocorrer em variedades quase infinitas, que podemos chamar, por exemplo, de felicidade, prazer, beleza, significado e amor, como sentimentos bons, ou de tristeza, dor, nojo, vazio e medo, como sentimentos ruins. Estas são generalizações e provavelmente uma pequena amostra de todos os tipos possíveis, muitos dos quais ainda são desconhecidos para nós. Se seres sencientes existirem em outras partes deste imenso universo, eles podem ter diferentes variedades de sentimentos, que podem ser boas ou más.
Algumas considerações
Todos os momentos do tempo, em princípio, merecem a mesma consideração ética. Por esta razão, pode ser mais eficaz fazer sentimentos melhores no futuro, indiretamente por meio de estudo ou de trabalho, do que produzir as melhores sensações possíveis no presente. O valor ético direto vem de sentimentos bons ou ruins, apesar de que complexas questões de ordem prática possam fazer necessário gastar muito do nosso tempo com atividades que geram valor ético indiretamente.
Mesmo sem modelos computacionais avançados das regiões do cérebro, podemos estimar grosseiramente o valor relativo de sentir certas coisas em relação a outras. Usando uma experiência boa ou ruim como unidade de comparação, é possível estimar grosseiramente e quantificar o valor de outros sentimentos em relação a um deles, e fazer operações matemáticas. É também possível corrigir os cálculos para considerar vieses cognitivos.
Experienciar alguns sentimentos ruins a fim de sentir bons sentimentos é algo que nós muitas vezes aceitamos como uma troca possível. Também é lógico, uma vez que as pessoas valorizam tanto os sentimentos bons como os ruins (esses, contudo, inversamente). Também parece aceitável a troca de experiências curtas e intensas por outras mais amenas, mas mais duradouras, ou vice-versa. Isto torna possível, em teoria, trocar matematicamente sentimentos bons e ruins, de diferentes valores e durações.
A assimetria em nosso potencial de ter sentimentos ruins em relação a bons pode nos levar a pensar que os sentimentos ruins têm uma importância incomparavelmente maior, ou que alguns sentimentos ruins são tão intensos que, se caírem além de um nível crítico, nunca poderiam ser aceitos em troca de sentimentos menos ruins, não importa quão menos ruins fossem. Este limite crítico para sentimentos ruins talvez possa corresponder ao valor pelo qual nenhum dos nossos melhores sentimentos poderia compensar. Embora possa se sentir isto instintivamente, esta ideia seria ilógica e insustentável, uma vez que um sentimento ruim levemente anterior ao limite, se estendido por duração suficiente, ou em número de indivíduos, parece claramente pior do que um breve momento de um sentimento ruim apenas após o limite. Repetindo este processo consecutivamente para sentimentos gradualmente mais ou menos intensos, isso mostra que sentimentos de todas as intensidades podem ser trocados, e que um limite crítico iria quebrar a ordenação de valor, ou dominância estocástica, sendo assim impossível.
A duração dos sentimentos e o número de sujeitos que tais sentimentos afetam são dimensões que se agregam cumulativamente ao valor ético. Estas duas dimensões, similarmente, não são imediatamente acessíveis a um mesmo sujeito. Momentos diferentes no tempo podem se tornar acessíveis por meio de memórias, e ser sentidos, mas a experiência de sujeitos diferentes não é acessível diretamente, embora ela exista da mesma maneira. Só podemos senti-la indiretamente, ao vê-la, ou sendo relatada. Seu valor seria melhor sentido se tivéssemos uma conexão mental direta com os estados mentais dos outros indivíduos como temos das nossas lembranças de outros momentos.
A teoria da decisão
Para decidir sobre se se deve ou não fazer alguma coisa, ou comparar opções para ver qual seria a melhor coisa a se fazer, existe um método. O valor ético de cada possível consequência é estimado, e então multiplicado por sua probabilidade de ocorrer, produzindo um resultado chamado valor esperado. Ao avaliar os casos, os valores de todas as consequências de cada caso, as boas e as ruins, devem ser somados, resultando em valores esperados que podem ser comparados entre os casos. Valores esperados de eventos após cada escolha subsequente podem ser estimados e comparados em árvores de decisão de muitos ramos.
O valor ético dos resultados é dado como um número em comparação a uma unidade de referência, que pode ser qualquer coisa com valor ético. O número pode ser positivo ou negativo, dependendo do seu valor. A probabilidade de que um evento irá ocorrer é estimada como uma fração entre 0 e 1. Por exemplo, se comer um sorvete de morango gera um valor de 1, sendo a unidade de referência, e comer um sorvete de sabor desconhecido tem uma probabilidade de 0,5 de gerar um valor de 1, e uma probabilidade de 0,5 de gerar um valor de 0,5, comer um sorvete de sabor desconhecido terá um valor esperado de 0,75.
A estimação de valores esperados deve, idealmente, considerar todas as coisas que poderiam ser relevantes, e ajustá-las nos cálculos. Alguns ajustes comuns envolvem vieses cognitivos, a taxa de desconto temporal, e considerar distribuições de probabilidade para valores incertos.
Vieses cognitivos que podem ser considerados nos cálculos incluem a aversão a risco (a tendência humana de atribuir um peso subjetivo maior a perdas do que ganhos, geralmente o dobro), efeitos de framing (a visualização subjetiva de perdas e ganhos em relação ao estado presente e não ao estado absoluto; por exemplo, um copo meio vazio ao invés de meio cheio), a tendência de dar um peso exagerado a eventos extremos com probabilidade muito baixa (como ganhar na loteria), a tendência de processarmos mal diferenças entre grandes números (Tversky e Kahneman 1992), a tendência de avaliar uma satisfação abstrata em vez de felicidade (Kahneman 2011), a tendência de nos tornarmos habituados a estímulos estéticos, entre outros.
A taxa de desconto temporal pode ser aplicada para o valor esperado de eventos futuros, devido a sua menor probabilidade de realmente ocorrer, já que o futuro é mais incerto que o presente. Pode ou não ser aplicada, dependendo da instabilidade esperada da situação que irá gerar o evento no futuro. Esta taxa de desconto temporal também tem um viés cognitivo, por ser distribuída como uma função hiperbólica (Green et al. 1994).
Para levar em conta a incerteza dos valores, uma variedade maior de modelos pode ser levada em conta, além da estimativa principal, utilizando distribuições de probabilidade que podem ser calculadas com ferramentas estatísticas, como intervalos de confiança ou inferência Bayesiana. No entanto, quando há incerteza sobre questões de grande impacto ético, antes de decidir, pode ser mais eticamente valioso estudá-las cuidadosamente e encontrar maneiras de aumentar a certeza sobre elas.
Agradecimentos
Por ajudar de alguma forma no desenvolvimento dessas ideias, agradeço a João Lourenço, Leo Arruda, Diego Caleiro, Rafael Proença, Sean Cusack e David Pearce.
Referências
Darwin, C. 1859. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray.
Green, L., A. F. Fry, and J. Myerson. 1994. Discounting of delayed rewards: a life span comparison. Psychological Science 5(1): 33–36.
Kahneman, D. 2011. Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux.
Kringelbach, M. L. 2009. The pleasure center: trust your animal instincts. New York: Oxford University Press.
Tversky, A., and D. Kahneman. 1992. Advances in prospect theory: cumulative representation of uncertainty. Journal of Risk and Uncertainty 5(4): 297–323.
Notas
* Texto traduzido por Leo Arruda. Revisado por Lauro Edison.