por Lauro Edison, 2012 * (Ler partes I e II)
Ora, a racionalidade do Deep Blue é genuína? Certamente o é em parte, essa é justamente a origem do problema. Mas o que exatamente está havendo? Antes de fazer as perguntas filosóficas e científicas substanciais – até que ponto as metas, algoritmos e informações do Deep Blue são como nossos desejos, raciocínios e crenças? – é aconselhável seguir as reflexões da parte II e colocar as palavras em leilão. Quem dá mais? Quando “janta” esteve à venda para um novo caso, tínhamos alguns lances sobre ela: “refeição noturna!”, “segunda refeição!”, “ambas!”, “uma ou outra!”. Supondo que a prioridade judaica seja a rigidez de costumes, o lance mais valioso seria “ambas!” – assim a única maneira de respeitar a tradição, iniciando o shabat com o “jantar da sexta-feira”, seria fazer a segunda refeição à noite. Tal convenção é inflexível: segunda refeição diurna, ou primeira refeição noturna, nada disso seria oficialmente “janta”. Mas é claro que os objetivos judaicos poderiam ser outros e, portanto, outra a maneira ideal de resolver a palavra.
Quais os “lances” para a racionalidade (ou não) do Deep Blue?
Se “racionalidade” costuma ser, em casos típicos, a “faculdade de uma pessoa, raciocinando a partir de suas crenças ou suposições, de pensar em maneiras viáveis de satisfazer seus desejos”, é preciso perguntar onde mais faria sentido enxergar essa mesma faculdade, e quanto dela, na ausência de algum de seus componentes típicos. Importa o fato de a racionalidade ser tipicamente humana? É bem óbvio que não, e ninguém hesitaria em atribuir racionalidade a alienígenas como o E. T., de Steven Spielberg, ou àqueles que supostamente nos visitam, a se levar a sério os ufólogos. Além disso, quanto mais estiver claro que certos animais fazem basicamente o que fazemos, no que se trata de perseguir seus objetivos, mais as pessoas se convencerão de que também eles são racionais.
Da mente, que é certamente a principal questão em jogo aqui, trataremos depois. Mas ainda que a mente não seja exigida, pelo menos alguma espécie de agência é presumida? Isto é, para ser considerado racional, um processo precisa ser levado a cabo por um agente qualquer? Para os propósitos deste texto, um “agente” é uma entidade que, com ou sem consciência, é capaz de ter a iniciativa de uma ação, como os gatos, robôs e vírus, e talvez também os computadores (e os vírus de computadores!); pedras, calculadoras, carros e pessoas mortas não são agentes, neste sentido, mas passivos, “meros pacientes”. Sem discutir a complicada noção de “iniciativa”, será suficiente aqui ficarmos com essa vaga noção intuitiva, extraída de exemplos. Pois bem: a única candidata à racionalidade, se é que ela é uma, que dificilmente pode ser considerada um agente, é a seleção natural. Espere mais um parágrafo.
Raciocinar, ou fazer inferências lógicas, é essencial? A não ser pelo apenas didático exemplo da seleção natural, que veremos logo a seguir, certamente que sim. Como ficou claro desde o princípio, se algo está no coração da razão, é a capacidade de escrutinar (processar, recombinar, raciocinar sobre) informações dadas (ou supostas) de uma tal maneira que, se estas estiverem corretas em algum sentido relevante, também estarão corretas, no mesmo sentido, as informações resultantes do escrutínio. Mas – e eis uma pergunta importante – qual é a maneira de escrutinar informações para esse fim? Quando falarmos sobre regras lógicas formais e intuições, lidaremos com isso.
Ainda, diríamos que é essencial à razão a capacidade para representar um qualquer objeto no pensamento ou, se quisermos ser neutros, de assimilar ou apreender informações, em algum sentido amplo? Sem dúvida, do contrário não haveria qualquer coisa ou problema sobre o qual a razão pudesse trabalhar. O exemplo mais remoto de tal tipo de capacidade, para bem testar nossas palavras, é justamente a seleção natural. Mesmo que não possua objetivo algum e que (plausivelmente) não seja um agente em qualquer sentido, e muito menos seja consciente, o processo de seleção natural consegue elaborar olhos funcionais a partir do feedback do mundo físico: é porque a luz funciona de um certo modo e porque a evolução acaba “tocando” esse fato de uma maneira adequada que, através das gerações, os olhos entram no texto do DNA.
Frise-se que a seleção natural não possui qualquer representação mental do mundo físico no sentido em que nós, humanos, a temos; e não possui nem mesmo a capacidade de “ler” ou “registrar” a estrutura das leis da física como se fosse um computador recebendo inputs, ao estilo de Deep Blue: não há nenhuma “área de processamento” onde as informações devam ser assimiladas, tampouco alguma necessidade de traduzi-las para alguma linguagem computacional. Ainda assim, a seleção natural usa o próprio mundo físico como “área de trabalho”. Em vez de “re-presentar” a realidade para si, ela apenas usa a presença mesma, diretamente. De fato, meras mutações aleatórias são suficientes para “o processo” ser impactado pela estrutura do mundo de um modo construtivo: só vingam as mutações cujos organismos, após testados na interação direta com o ambiente físico, se revelarem eficientes. Esse é o único – e suficiente – ponto de contato entre o processo da seleção natural e a estrutura do mundo. Não há qualquer espécie de raciocínio ou inferência lógica por trás da elaboração evolutiva do olho. É um atirar pra todos os lados e o que colar, colou. Poderia um tal processo ser considerado racional? Se pensarmos na excelência inigualável de coisas como olhos e cérebros, é claro que chega a ser tentador. Mas se, em vez disso, lembrarmos do quão absolutamente rudimentar e grosseiro é o próprio processo, muito dificilmente.
Seja como for, todos precisam concordar um mínimo com o filósofo Daniel Dennett, para o qual a seleção natural é, de certo modo, “sensível a razões” já que “percebe” e “escolhe” os projetos que de fato são mais adaptados ao ambiente 1. Mas qual a força dessas aspas? Para Dennett, é chocantemente pouca.
Nós forjamos nossas intuições sobre a razão com base em outros seres de nossa linhagem, ao longo do último milhão de anos pelo menos. O processo de seleção natural só foi compreendido há um século e meio. Como ficamos? Não estamos dispostos a concordar que a palavra “razão” seja aplicável a qualquer processo capaz de criar design. O aspecto mais fascinante da seleção natural, conforme tipicamente entendido, é justamente a criação de design na ausência de racionalidade. Um processo cego e desperdiçador, incapaz de planejamento ou previsão, que seca um mar pra obter um cubo de gelo. Um “processo irracional” foi como Darwin o chamou. Mas aceitar isto, como vimos, equivale a aceitar que não pode haver razão onde não houver algum tipo de raciocínio ou capacidade lógica. O que era óbvio desde o início, é claro. Não obstante, o fato de haver por aí expressões sugestivas como “a ‘racionalidade’ (ou a pseudo-racionalidade) da seleção natural”, “a evolução é mais esperta do que você” (Francis Crick) 2 ou mesmo a preferência explícita de Dennett por considerar o processo inteligente (apesar de dividido em inúmeras microetapas estúpidas) 3, é mostra de que nossas intuições sobre a razão sempre vão balançar diante da majestosa descoberta de Darwin. Sim, parece mesmo racionalidade. A ponto de enganar a legião de crentes no “design inteligente”.
Agora a sutileza importante: a despeito de tudo o que foi dito, tampouco estará completamente errada a ideia de que em algum sentido a seleção natural é racional, ou “quase racional” como sugere Dennett 4. Devidamente compreendida, esta é uma posição inteligível, talvez mesmo fundamental, e certamente não deve ser excluída por definição. Mas pássará pela ideia de que a seleção natural é, no fim das contas, um tipo de agente ou, claro, um “quase agente”. Outra vez como sugestivamente coloca Dennett, “a Mãe Natureza”.
Mas, por fim, continuando nossos testes, é essencial à razão a perseguição de objetivos (ou desejos)? Como vimos isto se relaciona com a distinção entre razão epistêmica e razão prática, noções que aqui se pretende unificar. Como esta é uma questão que basicamente independe dos demais resultados, também ficará na fila por agora.
O resultado até aqui, espero eu, foi termos concordado que a palavra “razão” é aplicável, no máximo, à capacidade de certos agentes de realizar algum tipo de processo de escrutínio lógico a informações previamente assimiladas de um modo adequado no sentido de delas extrair conclusões ou instruções. Para uma definição parcial, esta está adequadamente feia e burocrática. Releia. É quase a descrição do que o Deep Blue faz. E, de fato, não exclui nem mesmo a própria seleção natural, na medida em que ainda ousemos lha enquadrar como um “agente” que é “sensível a razões”. Como se vê, já testamos a palavra o suficiente e mesmo as ideias mais sutis, como a de que também a seleção natural é em certo sentido racional, podem ser expressas de um modo preciso.
Vamos então para o clímax de nosso problema, disputar as questões realmente substantivas, filosóficas e científicas.
O que nos falta decidir, sobretudo, é se tais agentes precisam ou não ser conscientes. Mas pra isso provavelmente precisamos entender melhor aquilo que está no âmago da racionalidade: os “processos inferenciais”. A grande pergunta é: até que ponto nós, humanos, fazemos o mesmo que os computadores quando analisamos informações? Até que ponto fazemos algo diferente? O que está por trás do australopiteco e do HAL, do Kasparov e do Deep Blue? E como exatamente isso importa para a ideia de racionalidade? Estas já não são questões sobre palavras. De resto, decidir se a mente é ou não essencial à razão nos dirá, também, que espécie de “assimilação de informações” lhe é adequada: pra dizer pouco, é plausível que exista uma diferença crucial entre, de um lado, apreender a realidade através de representações subjetivas e conscientes e, de outro, processar dados, físicos ou abstratos, na forma de bits que serão “analisados” (ou “processados”) de um modo cego.
Ou talvez seja essencialmente a mesma coisa. O que você acha?
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A seguir: parte IV A Natureza das Inferências
Os pensamentos seguem regras formais? Qual a relação entre raciocínio natural, intuições e lógica formal?
Notas
- * Texto original de Lauro Edison, revisado por Leo Arruda. ↩