por Lauro Edison *, 2012 (Ler partes I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII)
“Abaixo a razão e o pensamento! O negócio é só sentir, meu irmão, só sentir.”
– Caio Fernando de Abreu
A situação é conhecida de muitos: você está apaixonado por uma pessoa que, com toda a probabilidade, te fará sofrer. E muito. Mas quase que por isso mesmo te fará se sentir no paraíso, na remota possibilidade de tudo dar certo. Eis que a humanidade inteira se divide em duas alas: os racionais e os emocionais; os calculistas e os românticos. Os primeiros defendem que a atitude racional é evitar o envolvimento a todo custo, “agir com a cabeça”, evitando assim a estupidez de abraçar uma ilusão. Os segundos defendem que a única atitude honesta é se entregar aos próprios sentimentos, “seguir o coração”, em vez de tentar enganar a si mesmo abafando a própria natureza. E quando acontece, todo mundo descobre que tem uma versão das duas alas na própria cabeça. Segue-se a oscilação típica: de “droga, estou sendo irracional” para “droga, estou sendo covarde”; de “droga, eu preciso parar!” para “droga, eu quero enganar quem?”.
A paixão romântica é apenas o exemplo mais agressivo de como nossas emoções e instintos fazem nosso raciocínio entrar em parafuso. Qualquer pessoa sob forte estresse, raiva, medo, fome, tesão ou alegria está propensa a tomar atitudes que, em geral, consideraria estúpidas, impensáveis ou excessivas. É destes conflitos, tão familiares a todas as pessoas que já viveram, que surge a ideia de que razão e emoção são opostos, incompatíveis ou, pelo menos, completamente separados. Não é uma concepção perfeitamente adequada? Certamente, se você quiser frustrar a maioria de suas emoções da forma mais irracional possível. online casino singapore
Mesmo a tradição filosófica considerou, desde Sócrates, Platão & Cia., que havia alguma oposição fundamental entre a razão e os instintos. De fato, era justamente para poder escapar do mando dos instintos, acreditavam eles, que a razão servia. Essa ideia ainda é talvez a concepção mais comum sobre a relação entre a razão e as emoções. Mas é falsa. Nossos instintos e emoções são a fonte exclusiva de nossos desejos fundamentais e, como vimos, a única diretriz invariavelmente racional, para qualquer indivíduo dotado de desejos, é a de procurar satisfazer tais desejos da melhor forma possível. Segue-se que a razão não poderia estar mais a favor das emoções e instintos.
O que acontece quando estamos sob fortes emoções e, então, raciocinamos mal, é apenas um caso particular do fato de que, em tais estados, fazemos qualquer coisa mal exceto levar as emoções a termo. É por isso que elas ficam intensas, afinal: para serem atendidas, custe o que custar. Quanto mais darwinianamente urgente ou importante é uma situação, mais a seleção natural agiu no sentido de nos tratar como marionetes. Ela é boa nisso, pois começou assim: insetos, águas-vivas, lagartos – provavelmente todos eles agem como marionetes, a cada passo, ao menos a maior parte do tempo. Agora você pode se perguntar: qual a vantagem de ficar estúpido e fora de si, justamente nas situações mais importantes e intensas? Pra você, nenhuma. Pros seus genes, toda.
Essa é, de fato, a tensão essencial inerente a seres racionais e biológicos como nós: somos desenhados para sobreviver e reproduzir, não para ser felizes. Mas o que queremos é ser felizes, mais do que (meramente) sobreviver e reproduzir. Com o resto dos animais os títeres em geral funcionam bem: eles alegremente vão atrás do que lhes parece agradável, a curto prazo, sem grandes reflexões sobre as consequências e alternativas. Mas nós temos a bênção (pra alguns a maldição) de perceber que nossos desejos imediatos, muitas vezes, vão nos prejudicar a longo prazo ou, ao menos, trarão pouco benefício em comparação com certas alternativas menos instintivamente desejáveis. E então podemos seguir outra rota. Nossa rota. A consequência mais icônica desta liberdade é a existência de preservativos. A seleção natural perdeu o controle? Aparentemente ela pode se dar o luxo de nos permitir ir contra a propagação de genes, em casos específicos, porque ao contrário dos chimpanzés e seus amigos, já estamos em sete bilhões. Obviamente nossa liberdade compensou. Mas não sozinha. Nos momentos-chave nós ainda perdemos o controle – ou quase isso. A liberdade que a Mãe Natureza nos concede é condicional.
Podemos quebrar essas correntes?
Uma coisa óbvia: é mais difícil para você, sedento de raiva, conseguir equilibrar uma pilha de pratos, do que para um equilibrista profissional, sedento de raiva, fazer o mesmo. O que isso significa? Que treino e aprendizado funcionam. E não precisam funcionar apenas para objetivos tão inúteis quanto o de equilibrar pratos com raiva. Uma pessoa altamente reflexiva, acostumada aos benefícios de prever as consequências diante de explosões emocionais, certamente terá mais facilidade para evitar o impulso de puxar o gatilho, numa acalorada discussão de trânsito, do que alguém vulgarmente instintivo. E mesmo num caso simples e comum desses, a diferença pode ser tão grande quanto a que existe entre, por um lado, se ir preso por destruir a vida de alguém e, por outro, continuar com a vida perfeitamente nos trilhos. Não tem conversa: ampliar a capacidade de se manter “em casa” diante de emoções intensas é uma estratégia eminentemente racional, dado o manual de instruções da natureza humana. E isso não é ir contra as emoções, mas sim contra a cegueira imediata que elas às vezes provocam. A recompensa por não sair de si será, muitas vezes, nada menos do que satisfazer às mesmas emoções, só que de um modo mais inteligente e sem consequências (emocionalmente!) negativas.
Infelizmente existe uma ilusão persistente no caminho deste objetivo. Há um aspecto sobre o qual é especialmente correto o diagnóstico de Schopenhauer de que “a inteligência…” – justamente essa capacidade racional de encontrar motivações além, capazes de competir com os muitas vezes obtusos desejos imediatos–“…é invisível para quem não tem nenhuma”. Dificilmente é possível superar a seguinte citação, a esse respeito:
“O homem possui todos os impulsos que têm [as criaturas inferiores], e muitos outros além destes (…). Será observado que nenhum outro mamífero, nem mesmo o mico, mostra um leque tão amplo deles.
A razão, per se, não pode inibir os impulsos; a única coisa que pode neutralizar um impulso é um impulso no sentido contrário. A razão pode, contudo, fazer uma inferência que estimulará a imaginação de forma a liberar o impulso no sentido contrário; e assim, embora o animal mais fértil em razão possa também ser o animal mais fértil em impulsos instintivos, ele nunca pareceria o autômato fatal que um animal meramente instintivo seria.”
–William James, The Principles of Psychology (1890)
O problema é que, como também Nietzsche percebeu, “aqueles que foram vistos dançando foram julgados loucos por aqueles que não podiam ouvir a música”: a motivação que se ergue a partir de reflexão racional, por intensa e inspiradora que seja, costuma ser indetectável pela sensibilidade dos que ignoram o resultado daquela reflexão. Como é típico avaliarmos as estratégias e escolhas alheias com base em nosso próprio horizonte, o resultado é que as motivações dos outros, se forem sofisticadas o suficiente, nos serão invisíveis. E então nos parecerão frias, forçadas e inautênticas. Sentimos que, se fosse conosco, nós teríamos sido “mais emocionais e intensos”. Essa estupidez é generalizada a ponto de ocorrer em casos tão simples quanto o da pessoa que, nunca tendo lido um livro, se pergunta como a outra pode ser tão débil e enfadonha a ponto de suportar a monotonia de ler, com artificial determinação, páginas e mais páginas de aborrecido texto. É exatamente o receio de se tornarem “frias e apáticas” desse modo que leva muitas pessoas a antipatizarem com a perspectiva de se tornarem mais racionais. Mal desconfiam que a única razão de haver pessoas insistindo em atitudes e preferências “tão maçantes” é terem encontrado experiências mais emocionais e intensas. O que deveria ser óbvio. Sendo os humanos como são, o que mais poderia entusiasmá-los, afinal?
A razão, portanto, certamente não nos leva à impulsividade romântica de simplesmente “seguir o coração”, mas tampouco se trata de abraçar uma ranzinza e paralisante frigidez estoica, ou budista. É preciso derrubar a imagem de fria sabedoria, típica de mestres eremitas (como o Yoda de Star Wars, ou o Gandalf de O Senhor dos Anéis) ou de pessoas roboticamente calculistas, essas que passam por “racionais” –se é que tais caricaturas existem fora da imaginação dos de índole romântica. A recusa dos próprios desejos não é sabedoria nenhuma, mas apenas covardia e conformismo: fugir das armadilhas dos desejos, em vez de ousar desarmá-las. Que tais armadilhas emocionais tenham dado origem a duas formas clássicas e antagônicas de estupidez, as que vimos logo no começo, é o sintoma mais visível de nossa condição natural. A primeira estupidez é o romantismo: seja autêntico, siga suas emoções! A segunda é o estoicismo: seja racional, ignore suas emoções! O mínimo que se pode diagnosticar disto é que, no que se trata de nossas ações, temos uma forte necessidade de nos agarrar a fórmulas simples, de aplicação geral. Há um motivo fundamental pra que isto seja assim: se falharmos, a culpa é da fórmula – e dos conselheiros, da ideologia, do saber popular, que não cessam de repetir as fórmulas nas mais diversas embalagens – e não de nossa (inexistente) deliberação. Isto é, recusamos a responsabilidade. E por quê?
Voltemos à nossa típica condição evolutiva africana de há centenas de milhares de anos: responsabilidade é uma péssima coisa pra se ter, socialmente, em um mundo onde o apoio do grupo é vital e onde, salvo aquilo que já é do conhecimento de todos (os 30 a 60 indivíduos desconfiados que te cercam, desde que você nasceu, e dos quais você não pode fugir, para refazer sua imagem em outro grupo), qualquer grande inovação racional é, na melhor das hipóteses, mal informada e arriscada. Neste cenário, a pressão para a conformidade, para o espírito de rebanho, é colossal: faça o que os outros fazem, pois o resto provavelmente não dará certo. E o mais importante: se você fracassar seguindo uma fórmula popular, ou uma atitude comum, a culpa não é sua; foi apenas azar. Mas se você fracassar tomando atitudes excêntricas, baseadas em raciocínio próprio, perderá até mesmo a confiança dos outros. O preço social é muito mais caro.
E ainda nascemos basicamente com a mesma covardia inata. Você sabe, os genes são lentos. A diferença é que agora, muito ao contrário de antes, a qualidade da informação disponível torna inconcebivelmente melhor se guiar pela razão, que pode fazer muito, do que pela maioria, cujo instinto de “seguir a maioria” é hoje tão obsoleto quanto o instinto, outrora eficaz, de ingerir açúcar até o limite da capacidade. E… Continuamos sentindo e evitando o peso da responsabilidade. Há mesmo uma teoria natural da religião segundo a qual esta surge justamente da necessidade de evitarmos a responsabilidade: façamos o que fizermos, “foi conforme a vontade dos deuses” – se der certo, maravilha; se der errado, Cristo ou Alá sabem o que fazem. Dados os nossos instintos covardes, é um dispositivo brilhante.
Ou não mais. O que a capacidade racional nos apresenta agora é o potencial de tomar as rédeas de nossa natureza, ainda que de forma indireta e estratégica. Assumir a responsabilidade, afinal. Mas levar nossos desejos à maior intensidade e realização, em vez de meramente evitá-los, o que equivale a não realizá-los; ou obedecê-los cegamente, o que equivale a só realizá-los de forma dolorosamente parcial e destrutiva. Não somos meras vítimas de nosso desequilíbrio emocional inato. Apesar de tudo, temos capacidade de previsão e deliberação. A seleção natural e, com ela, nossos genes e instintos, não. Isso basta para tornar estúpida a regra geral seja de “seguir as emoções”, seja de “evitar as emoções”. Um olhar perspicaz sobre quais emoções, consequências, fatos e alternativas estão disponíveis, isto sim é uma atitude racional – algumas emoções serão evitadas, assim que se perceba que as alternativas são melhores e, portanto, outras emoções então despertadas, mais intensas e satisfatórias, serão seguidas. Cada caso é um caso. Os detalhes importam. Não há auto-ajuda ou solução simples e mágica. E somente a razão pode avaliar concretamente o que estiver em jogo. O resultado será uma atitude bem mais complexa e eficaz. O preço? Quanto mais obtusos forem os observadores, mais perturbados ficarão com a excentricidade de suas atitudes.
Foram os excêntricos, afinal, que moveram o mundo desde sempre. Algumas pessoas pareciam simplesmente ter a disposição emocional de não sentir tão fortemente a necessidade débil de se parecer com as outras pessoas. E podiam seguir, livres e donas de si, como sugeria Oscar Wilde, ele próprio um excêntrico paradigmático, seus próprios caminhos, dando ao mundo o melhor de si mesmas. Isto, claro, quando as demais não as impediam. Quem sabe o primeiro deles tenha se parecido com o australopiteco de 2001, triunfante; mas provavelmente tenha sido apenas um dissidente que, incompreendido, caiu no ostracismo. Como tantos. Passaram agricultores, escritores e diversos inovadores anônimos; passaram Asokas, Tales, Epicuros, Eratóstenes, Demócritos, Khayans, Arquimedes, Keplers, Galileus e Newtons. E, graças a eles, vivemos hoje num contexto vastamente mais espetacular do que eles próprios viveram: os sucessos da razão epistêmica, atingindo da estrutura da matéria ao passado e futuro do Universo, além de toda a sutileza conceitual, lógica e metafísica atingida pela filosofia em suas diversas frentes; e os sucessos da razão prática, da medicina à internet, da segurança aos transportes. A razão é suficiente para melhorar até a vida daqueles que francamente a hostilizam, e que parecem preferir desde políticos parasitas a vendedores sedutores.
Pra onde vamos? Sendo realistas, mas nada óbvios, a tecnologia avançou mais no último século que nos últimos dez mil anos; e mais na última década que no último século. Com uma velocidade sem precedentes, os frutos da racionalidade estão se incrustando em cada artéria social, em cada relação, em cada momento de cada pessoa. Não poderia haver melhor propaganda para a razão do que seu sucesso. E ainda nesta geração as coisas serão mais revolucionadas do que já foram na última década. Em que direção? Na direção de nossos desejos. E quais são eles? Romantismos e estoicismos à parte, são os óbvios e naturais: saúde, segurança, liberdade, afetos. Que nos levarão à imortalidade, ao fim da violência, à colonização de outros planetas e ao fim do governo parasitário (perdoe-se a redundância) e, por fim, ao aumento sem precedentes de toda forma de cooperação e empatia. Cedo ou tarde, mas seguindo a tendência dos últimos dois mil anos. Você não pode deter isto – e por que alguém iria querer tal coisa? Você só pode tentar escutar essa música.
Uma última lição crucial para os românticos, e na língua deles:
“Os sentimentos e sua derivação dos preconceitos. ― ‘Confie no seu sentimento!’ ― Mas sentimentos não são nada de último, nada de original; por trás deles estão juízos e valorações, que nos são legados na forma de sentimentos (inclinações, aversões). A inspiração nascida de um sentimento é neta de um juízo ― frequentemente errado! ― e, de todo modo, não do teu próprio juízo! Confiar no sentimento ― isto significa obedecer mais ao avô e à avó, e aos avós deles do que aos deuses que se acham em nós: nossa razão e nossa experiência.”
― Nietzsche, Aurora, § 35
É preciso compreender, antes de tudo, que os sentimentos, emoções, instintos, não são um guia encantado para a ação, como certamente parecem às vezes. Algumas pessoas encaram seus impulsos mais profundos como se fossem algum tipo de sinal do Universo ou mensagem de Deus. E sentem que, se seguirem tais cantos de sereia, a realidade cumprirá sua parte no acordo, conspirando para tudo dar certo. Isso não é mera ingenuidade de nossa parte, mais uma profunda ilusão esculpida em nossa biologia: onde o sóbrio realismo tenderia a nos desviar da eficiência darwiniana, a seleção natural embutiu, em nossos sentimentos e desejos mais candentes, uma promessa mágica de realização. Esse é o delírio humano fundamental, exibido em toda a sua potência no sucesso de vendas de O Segredo, um livro que reafirma “cientificamente” aquilo que todo mundo quer ouvir, porque de fato o sente no mais fundo de seu ser: peça com profunda sinceridade e o Universo dará. Genial, Rhonda Byrne, se aproveitando do ponto fraco da humanidade! Quantos de vocês já se ergueram, órfãos de um suposto Universo amigável? O nosso desafio nietzscheano é conquistar outra vez aquele otimismo jovial e alucinante, mas desta vez com uma diferença: será real; e será por nossa própria conta. Se você quer uma imagem da razão, O’Brien, imagine uma mão humana manipulando o Universo, para sempre.
Notas
- * Texto original por Lauro Edison, revisado por João Lourenço. ↩