Texto escrito por David Pearce[fn star title=”Notas”]David Pearce é utilitarista negativo e vegano. É autor de “O Imperativo Hedonista”(1995), um manifesto online que advoga a utilização de biotecnologias em prol da abolição completa do sofrimento no mundo vivo. Em 1998, foi co-fundador, conjuntamente com Nick Bostrom, da Associação Transhumanista Mundial, hoje conhecida como Humanity Plus.[/fn] (2011)[fn star]Texto original de David Pearce, traduzido por Gabriel Garmendia. Revisão técnica por Lauren de Lacerda Nunes. Revisão do IERFH por Leo Arruda. O original em inglês pode ser lido em Top Five Reasons Transhumanism Can Eliminate Suffering.[/fn] (Versão em PDF)
A realidade é imensa. Dessa forma, nosso otimismo deve ser limitado aos seres sencientes em nosso cone de luz à nossa frente. Mas consigo prever, com alguma hesitação, que a última experiência abaixo do “zero hedônico” será um evento precisamente datável, há várias centenas de anos a contar desse momento.
Aqui estão cinco razões para um otimismo “cauteloso”:
1) Em breve, seremos capazes de escolher nosso próprio nível de sensibilidade à dor.
É difícil expressar em palavras o horror da dor física impossível de ser aliviada. Milhões de pessoas portadoras da síndrome da dor crônica sofrem graves tormentos físicos diariamente. Contudo, uma revolução na medicina reprodutiva é iminente. Em pouco tempo seremos capazes de escolher o perfil genético da tolerância à dor de nossos futuros filhos. Além disso, a terapia genética autossômica permitirá aos adultos fazerem o mesmo. Claramente nossas respostas emocionais à dor aguda são moduladas por produtos de outros genes. Porém, pesquisas recentes sugerem que as variantes do gene SCN9A trazem a resposta. Assim, em uma ou duas décadas, o diagnóstico genético pré-implantação deverá permitir que futuros pais responsáveis escolham qual dos alelos SCN9A eles irão querer em seus filhos – o que leva a uma severa pressão de seleção contra as variantes desagradáveis do gene SCN9A.
Até o presente momento, não somos capazes de optar com segurança por uma das mutações sem sentido (e extremamente raras) do SCN9A, as quais seriam capazes de eliminar completamente a dor física. Um futuro mundo de nocicepção sem qualquer dor fenomenal dependerá dos avanços no campo da inteligência artificial e das neuropróteses – e, além disso, de uma correspondente revolução ética/ideológica. Ainda assim, ao selecionarmos alelos benignos do gene SCN9A, tanto para nós mesmos quanto para nossos filhos, o peso do sofrimento poderá ser reduzido dramaticamente.
2) Em breve, seremos capazes de escolher o quão recompensador queremos que seja o nosso dia-a-dia.
O cérebro é um órgão assustadoramente complexo. Apesar disso, as origens biológicas do humor e das emoções são primitivas e neurologicamente antigas. Suas vias metabólicas estão fortemente conservadas na linha evolutiva dos vertebrados e para além desta. Esse artigo ilustra como a presença ou a ausência de um único alelo é capaz de enriquecer ou prejudicar a qualidade de uma vida inteira.
Se pudesse escolher, qual alelo COMT você pré-selecionaria para os seus filhos? Prevejo que a maior parte dos pais responsáveis optaria pelo “gene feliz”. Ou você preferiria apostar na roleta genética, exatamente como fazemos hoje em dia?
Naturalmente, estamos rodeados de armadilhas. Como poderíamos nos prevenir dos efeitos colaterais inesperados? Quais serão as inevitáveis “consequências não intencionais” dessa inovadora mudança de vida? E quais serão as implicações sociais de uma população biologicamente predisposta a desfrutar de vidas mais ricas e felizes? Mas os perigos éticos de tentarmos preservar o status quo não são menos problemáticos.
Ajustes genéticos com o intuito de promover experiências mais ricas são apenas um antegosto da senciência pós-humana. Prevejo que nossos descendentes desfrutarão de gradientes de felicidade geneticamente pré-programados por toda a sua vida.
3) Em breve, tanto veganos quanto consumidores de carne poderão se alimentar de dietas livres de crueldade.
Atualmente, bilhões de seres sencientes suportam vidas repletas de sofrimentos inimagináveis em fazendas de criação intensiva. Os animais criados de forma intensiva são mortos em abatedouros para que devoremos suas carcaças. Ativistas pelos animais fazem campanhas contra a indústria da carne e contra a imensa exploração dos animais não-humanos. Mas a capacidade de racionalizar o interesse próprio está profundamente enraizada na natureza humana. Desta forma, creio que precisamos de uma estratégia de apoio. Até este momento, a New Harvest é a primeira organização mundial dedicada a promover a pesquisa e o desenvolvimento de carne in vitro e outros substitutos para a carne. Certamente o caminho da carne artificial produzida hoje em dia, que se assemelha à carne moída, até a produção em massa de filés é um grande desafio técnico. Mas o desenvolvimento de carne cultivada em laboratório, deliciosa e barata – cujo sabor e a textura são indistinguíveis da carne de animais abatidos – poderia potencialmente fazer com que a era da criação intensiva chegue ao seu fim.
Tradicionalistas poderão dizer que a carne in vitro não é “natural”. Mas compare-a à criação intensiva de animais.
4) Predadores carnívoros não-humanos poderão ser eliminados gradativamente.
Talvez o maior obstáculo para a eliminação completa do sofrimento seja o próprio sofrimento dos animais selvagens. Neste instante, bilhões de seres sencientes na natureza estão morrendo de sede ou fome, ou estão sendo estripados, asfixiados ou devorados vivos por predadores. O artigo de Jeff McMahan publicado no New York Times é um marco divisório, pois é o primeiro apelo de um acadêmico reconhecido para que o carnivorismo predatório seja eliminado. Desnecessário dizer que os obstáculos técnicos são imensos, em especial o controle global de fertilidade das espécies. Mas o maior desafio para o desenvolvimento de um ecossistema projetado com compaixão é simplesmente o status quo bias.
5) Devemos estar à beira de uma “explosão de inteligência”.
Creio que a existência do sofrimento no mundo é o desafio moral mais urgente que enfrentamos. Nem todos concordam com isso, e mesmo que concordassem; isso não implica no fato de que a abolição do sofrimento deva ser feita por meio de ataque direto, como se fosse a melhor estratégia. A impetuosidade descuidada em direção a uma utopia mal elaborada pode ser desastrosa. Para começo de conversa, é vital que a espécie humana evite os catastróficos riscos existenciais globais que enfrentamos nesse século. Nick Bostrom habilmente compreende os riscos existenciais como sendo “uma redução permanente do potencial axiológico humano”. Ademais, os humanos são a única espécie capaz de eliminar completamente o sofrimento do mundo vivo. Se nos destruíssemos, então a vida darwiniana dilacerada pela dor continuaria indefinidamente. De um ponto de vista mais pessoal, a perspectiva de um paraíso pós-humano poderia parecer quase cruel se não estivéssemos por perto para desfrutá-lo. Essa é uma das razões para celebrarmos a inovadora pesquisa sobre longevidade realizada por Aubrey de Grey e seus colegas na SENS. Contudo, muitos transhumanistas crêem que nossa prioridade mais urgente é mediar essa “Singularidade amigável” que eles esperam ainda para esse século. A Springer recentemente anunciou o primeiro livro acadêmico dedicado à hipótese da Singularidade tecnológica: The Singularity Hypothesis: A Scientific and Philosophical Assessment.
Sendo eu um cético e um transhumanista “bioconservador”, considero que a abolição do sofrimento levará algumas centenas de anos e implicará numa “ciborguização” em vez de um processo de “uploading”. Contudo, sempre é bom levar (muito) a sério a probabilidade de que se possa estar errado. Se uma Singularidade tecnológica estiver realmente próxima, então a abolição do sofrimento é viável ainda nesse século.
Por fim, gostaria de comentar a Declaração Transhumanista (1998, 2009) e seu compromisso com o bem-estar senciente. Nós transhumanistas somos uma comunidade vivaz e diversificada. A Declaração Transhumanista é um importante lembrete daquilo que nos une.