Ciência Açucarada

de Robert Wright, 1996*

 

Este texto é um excerto de O Animal Moral – Porque somos como somos:
a nova ciência da psicologia evolucionista
(Ed. Campus, 1996, p.123-125)
Uma reação comum às discussões sobre a moralidade à luz do novo darwinismo é: Será que não estamos pondo a carroça adiante dos bois? A psicologia evolutiva está apenas no começo. Já produziu algumas teorias com forte sustentação (uma diferença inata entre o ciúme masculino e o feminino); outras com uma sustentação razoável (a dicotomia santa-prostituta1); e outras tantas que são puras e plausíveis especulações (o módulo de “ejeção do parceiro”2). Será que tal conjunto de teorias terá realmente capacidade de suportar pronunciamentos radicais sobre a moralidade vitoriana, ou qualquer outra?

 

Philip Kitcher, um filósofo que em 1980 se firmou como um proeminente crítico da sociobiologia, levou esta dúvida um passo além. Ele acredita que os darwinistas deviam pisar com cuidado, não apenas ao fazerem ampliações morais ou políticas de sua ciência incipiente (ampliações que a maioria evita, graças às queimaduras que alguns receberam na década de 1970), mas ao fazerem ciência, para começar. Isto porque, mesmo que eles não ultrapassem a linha entre a ciência e os valores, alguém o fará; as teorias sobre a natureza humana inevitavelmente serão usadas para sustentar esta ou aquela doutrina de moralidade ou política social. E se as teorias se provarem errôneas, podem, entrementes, ter causado muitos prejuízos. A ciência social, observa Kitcher, é diferente da física ou da química. Se adotamos “uma visão incorreta das origens de uma galáxia distante”, então “o erro não será trágico. Mas, se ao contrário, nos enganarmos sobre as bases do comportamento social humano, se abandonarmos o objetivo de uma divisão justa das regalias e fardos da sociedade, porque aceitamos hipóteses equivocadas sobre nós mesmos e nossa história evolutiva, então as consequências desse erro científico podem ser realmente graves”. Assim, “Quando uma afirmação científica trata de questões de política social, os padrões de evidência e de autrocrítica devem ser extremamente rigorosos.”

 

Há dois problemas aqui. Primeiro, “a autocrítica” em si não é uma parte essencial da ciência. A crítica dos colegas – uma espécie de autocrítica coletiva – sim. É o que mantém rigorosos os “padrões de evidência”. E a autocrítica coletiva não pode sequer começar antes que a hipótese seja apresentada. Presumivelmente, Kitcher não está sugerindo que encurtemos o algoritmo do progresso científico nos abstendo de formular hipóteses fracas; as hipóteses fracas se fortalecem ao serem apresentadas e impiedosamente esmiuçadas. E se Kitcher está sugerindo que rotulemos as hipóteses especulativas como tais, ninguém tem nenhuma objeção. De fato, graças a pessoas como Kitcher (e não há sarcasmo na afirmação), muitos darwinistas são hoje mestres em qualificação cuidadosa.

 

O que nos leva ao segundo problema no argumento de Kitcher: a sugestão de que os cientistas sociais darwinistas, mas não os cientistas sociais em geral, devem proceder com grande cautela. O pressuposto implícito é de que as teorias darwinistas incorretas sobre o comportamento tendem a ser mais perniciosas e mais incorretas do que as teorias incorretas não-darwinistas sobre o comportamento. Mas por que seria assim? Uma doutrina psicológica inteiramente não-darwinista, e há anos considerada padrão – segundo a qual não há diferenças inatas mentais importantes entre homens e mulheres no que se refere à corte e ao sexo – parece ter causado muito sofrimento nas últimas décadas. E apoiava-se nos “padrões de evidência” mais baixos possíveis – não possuía evidência real alguma, isto sem falar no desprezo espalhafatoso e arrogante pela sabedoria popular de cada cultura do planeta. Por alguma razão, porém, isso não incomodou Kitcher; ele parece pensar que as teorias que tratam dos genes podem produzir efeitos nocivos mas as teorias que não tratam dos genes, não.

 

Uma generalização mais confiável seria que as teorias incorretas têm maior probabilidade de produzir efeitos nocivos do que as corretas. E, se, como muitas vezes ocorre, não sabemos ao certo quais as teorias certas e quais as erradas, nosso palpite seria adotarmos a que nos parece acenar com maior probabilidade de acerto. O pressuposto do presente livro é de que a psicologia evolucionista, apesar de sua juventude, é de longe a fonte mais provável de teorias sobre a mente humana que se provarão corretas – e que, de fato, muitas de suas teorias específicas já possuem uma fundamentação bastante sólida.

 

Nem todas as ameaças à exploração honesta da natureza humana vêm dos inimigos do darwinismo. No âmbito do novo paradigma, a verdade, por vezes, é açucarada. Há uma tentação frequente, por exemplo, de minimizar as diferenças entre homens e mulheres. Com relação à natureza mais polígama dos homens, os cientistas sociais darwinistas mais sensíveis talvez façam afirmações do gênero: “Lembrem que são apenas generalizações estatísticas, e qualquer pessoa pode divergir extraordinariamente da norma do seu sexo.” Bem, é verdade, mas poucas dessas divergências se aproximam da norma do sexo oposto (e metade das divergências ficam bem distantes da média normal para o sexo oposto). Ou: “Lembrem que o comportamento é influenciado pelo ambiente local e a escolha consciente. Os homens não têm que ter relações extraconjugais.” É verdade – e decisivamente importante. Mas muitos de nossos impulsos são, por definição, muito fortes, portanto qualquer força que queira sufocá-los precisará ser bem maior. É ilusório falar do autocontrole como algo fácil como apertar um controle remoto para trocar de canal.

 

E é, além disso, perigoso. George Williams, talvez a figura mais próxima de um fundador do novo paradigma, pode estar muito longe quando afirma que a seleção natural é “má”. Afinal, ela criou as coisas boas na natureza humana bem como as que são destrutivas. Mas certamente é verdade que as raízes de todo o mal são encontráveis na seleção natural e se expressam (como tantas outras coisas) na natureza humana. O inimigo da justiça e da decência realmente reside em nossos genes. Se neste livro parecemos nos desviar da estratégia de relações públicas praticada por alguns darwinistas, e enfatizamos mais o mal existente na natureza humana do que o bem, é porque pensamos que é maior o perigo de subestimar o inimigo do que de superestimá-lo.

 

 

 

Notas de rodapé

(no pdf, localizadas na página relevante)

 

1 O autor se refere à possível tendência masculina para preferir dois tipos de mulheres: as muito promíscuas como parceiras de curto prazo (“prostitutas”) e as pouco promíscuas como parceiras de longo prazo (“santas”).

 

2 Um hipotético mecanismo darwiniano, presente em ambos os sexos, que faria cada um perder o interesse sexual pelo parceiro, no caso de um romance prolongado não gerar filhos.