Em Defesa da Dignidade Pós-Humana

por Nick Bostrom, 2005*

 

Faculdade de Filosofia, Universidade de Oxford

“In Defence of Posthuman Dignity” (2005), Bioethics, Vol. 19, No. 3, pp. 202-214.
(Adicionado 8 de maio de 2007: Esse paper foi escolhido para ser incluído em uma antologia especial dos melhores papers publicados no jornal de Bioética nas últimas duas décadas.)

 

 

Resumo: Posicionamentos acerca da ética de tecnologias de aprimoramento humano podem ser (grosseiramente) caracterizados como indo do transhumanismo ao bioconservadorismo. Transhumanistas acreditam que tecnologias de aprimoramento humano devem ser amplamente disponibilizadas, que indivíduos deveriam ter ampla discrição sobre quais dessas tecnologias irão aplicar em si mesmos, e pais deveriam normalmente ter o direito de escolher aprimoramentos para seus filhos porvir. Bioconservadores (cujos proponentes inclui escritores diversos como Kass, Francis Fukuyama, George Annas, Wesley Smith, Jeremy Rifkin, e Bill McKibben) se opõem, de maneira geral, ao uso de tecnologia para mudar a natureza humana. Uma ideia central no bioconservadorismo é que tecnologias de aprimoramento humano ruiriam a dignidade humana. Para impedir um ‘escorregão’ [slippery slope] em direção a um estado pós-humano fundamentalmente degradado, bioconservadores argumentam frequentemente pelo banimento amplo de aprimoramentos humanos que seriam promissores sob outros aspectos. Esse paper distingue dois medos comuns sobre o pós-humano e argumenta pela importância de um conceito de dignidade que seja inclusivo o bastante para também se aplicar a muitos possíveis seres pós-humanos. Reconhecer a possibilidade de dignidade pós-humana derruba uma importante objeção contra o aprimoramento humano e remove um padrão duplo falseador [distortive]  do campo de nossa visão moral.

 

 

 

Transhumanistas vs Bioconservadores

Transhumanismo é um movimento vagamente definido que se desenvolveu gradualmente nas últimas duas décadas, e pode ser visto como uma consequência do humanismo secular e do Iluminismo. Ele afirma que a natureza humana atual é melhorável por meio do uso de ciência aplicada e outros métodos racionais, os quais tornam possível aumentar a extensão da saúde humana, ampliar nossas capacidades intelectuais e físicas, e nos dar controle aumentado sobre nossos próprios estados mentais e disposiçõesii. Tecnologias de interesse incluem não apenas as atuais, como engenharia genética e tecnologia da informação, mas também desenvolvimentos antecipados para o futuro como uma realidade virtual completamente imersiva, nanotecnologia em fase de máquinas, e inteligência artificial.

Transhumanistas promovem a visão de que tecnologias de aprimoramento humano deveriam ser amplamente disponibilizadas, e que indivíduos deveriam ter ampla discrição sobre quais dessas tecnologias aplicarem em si mesmos (liberdade morfológica), e que pais deveriam normalmente poder decidir quais tecnologias reprodutivas utilizarem quando tendo filhos (liberdade reprodutiva)iii. Transhumanistas acreditam que, por mais que haja diversos perigos que precisam ser identificados e evitados, tecnologias de aprimoramento humano oferecem enorme potencial para usos profundamente valiosos e humanamente benéficos. Em última instância, é possível que tais aprimoramentos possam nos fazer, ou aos nossos descendentes, ‘pós-humanos’, seres que podem ter extensões de saúde indefinidos, faculdades intelectuais muito maiores do que qualquer ser humano atual – e talvez sensibilidades inteiramente novas ou modalidades – assim como a habilidade de controlar suas próprias emoções. A abordagem mais sábia vis-à-vis esses prospectos, argumentam os transhumanistas, é abraçar o progresso tecnológico, ao mesmo tempo em que se defende fortemente os direitos humanos e a escolha individual, e tomando ação especialmente contra ameaças concretas, como abuso militar ou terrorista de armas biológicas, e contra efeitos colaterais indesejados sociais ou ambientais.

Em oposição a essa visão transhumanista se coloca o campo bioconservativo que argumenta contra o uso da tecnologia para modificar a natureza humana. Escritores bioconservadores proeminentes incluem Leon Kass, Francis Fukuyama, George Annas, Wesley Smith, Jeremy Rifkin e Bill McKibben. Uma das preocupações centrais de bioconservadores é que tecnologias de aprimoramento humano poderiam ser ‘desumanizadoras’. A preocupação, que tem sido expressa de várias formas, é que essas tecnologias podem ruir a dignidade humana ou inadvertidamente erodir algo que é profundamente valioso sobre ser humano, mas que é difícil de colocar em palavras ou de ser calculado em uma análise de custo-benefício. Em alguns casos (por exemplo Leon Kass) a inquietação parece derivar de sentimentos religiosos ou cripto-religiosos enquanto que para outros (como Francis Fukuyama) ela parece derivar de bases seculares. A melhor abordagem, esses bioconservadores argumentam, seria implementar banimentos globais em pacotes de tecnologias de aprimoramento humano para impedir um ‘escorregão’ [slippery slope] em direção a um estado pós-humano fundamentalmente degradado.

Por mais que toda breve descrição necessariamente contorne nuances significantes que diferenciam escritores dentro dos dois campos, eu acredito que a caracterização acima, ainda assim, ressalta uma das linhas de fuga em um dos grandes debates de nosso tempo: como nós deveríamos olhar para o futuro da humanidade e se deveríamos ou não tentar usar a tecnologia para fazer a nós mesmos “mais do que humanos”. Esse paper distinguirá dois medos comuns sobre o pós-humano e argumentará que eles são parcialmente sem fundamento e que, até onde eles correspondem com riscos reais, há respostas melhores do que implementar banimentos amplos na tecnologia. Eu farei algumas considerações sobre o conceito de dignidade, que os bioconservadores acreditam ser colocada em perigo pelas tecnologias de aprimoramento humano iminentes, e sugerirei que nós precisamos reconhecer que não apenas humanos em sua forma atual, mas também pós-humanos poderiam ter dignidade.

 

Dois medos sobre o pós-humano

O prospecto da pós-humanidade é temido por pelo menos duas razões. Uma é que o estado de ser pós-humano possa ser degradante nele mesmo, de tal forma que se tornar pós-humano possa ser causar dano a nós mesmos. Outra é que pós-humanos podem representar uma ameaça para humanos ‘comuns’. (Eu deixarei de lado uma terceira possível razão, que o desenvolvimento de pós-humanos possa ofender algum ser sobrenatural.)

O bioético mais proeminente a focar o primeiro medo é Leon Kass:

A maior parte dos presenteados [bestowals] pela natureza tem suas dadas naturezas especificadas por sua espécie: eles são cada um e todos de um dado tipo. Baratas e humanos são igualmente presenteados, mas de naturezas diferentes. Transformar um homem em uma barata – do modo como não é preciso que Kafka nos mostre – seria desumanizador. Tentar transformar um homem em mais que um homem pode sê-lo também. Nós precisamos de um apreço mais generalizado pelos presentes da natureza. Nós precisamos de uma consideração e um respeito particular pelo especial presente que é nossa própria natureza.iii

Transhumanistas contra-argumentam que os presentes da natureza são por vezes envenenados e não deveriam ser sempre aceitos. Câncer, malária, demência, envelhecimento, fome, sofrimento desnecessário, deficiências cognitivas estão entre os presentes que nós sabiamente recusamos. Nossas próprias naturezas especificadas por nossa espécie são uma rica fonte de muito do que é inteiramente não respeitável e inaceitável – suscetibilidade a doenças, assassinato, estupro, genocídio, trapaça, tortura, racismo. Os horrores da natureza em geral e de nossa própria natureza em particular estão tão bem documentadosiiv que é espantoso que alguém tão distinto quanto Leon Kass deveria ainda hoje em dia ser tentando a confiar na natureza como um guia do que é desejável ou normativamente certo. Nós deveríamos estar gratos que nossos ancestrais não foram varridos pelo sentimento Kassian, ou nós ainda estaríamos tirando piolhos das costas uns dos outros. Em vez de assentir à ordem natural, transhumanistas defendem que nós podemos legitimamente fazer uma reforma de nós mesmos e de nossas naturezas de acordo com valores humanos e aspirações pessoais.

Se alguém rejeita a natureza como um critério geral do que é bom, como a maior parte das pessoas ponderadas hoje em dia rejeita, ainda se pode, é claro, reconhecer que modos particulares de modificar a natureza humana seriam degradantes. Nem toda mudança é progresso. Nem mesmo todo tecnologia bem-intencionada de intervenção na natureza humana seria, no saldo, benéfica. Kass vai muito além desses truísmos, no entanto, quando declara que a completa desumanização está à espera de nós como um resultado inevitável de nós obtermos domínio técnico sobre nossa própria natureza:

a conquista técnica final de sua própria natureza deixaria quase que certamente a humanidade completamente debilitada. Essa forma de domínio seria idêntica à completa desumanização. Leia o Admirável Mundo Novo de Huxley, leia o Abolição do Homem de C. S. Lewis, leia a descrição de Nietzsche do último homem, e então leia os jornais. Homogeneização, mediocridade, pacificação, satisfação induzida por drogas, degradação do gosto, almas sem amores e anseios – esses são os resultados inevitáveis de fazer da essência da natureza humana o último projeto de domínio técnico. Em seu momento de triunfo, o homem Prometeu irá virar uma vaca satisfeita.v

Os habitantes fictícios de Admirável Mundo Novo, para pegar o exem­plo mais conhecido de Kass, realmente estão em falta de dignidade (em pelo menos um sentido da palavra). Mas a alegação de que isso é uma consequência inevitável de obter domínio técnico sobre a natureza humana é excessivamente pessimista – e sem base – se entendida como uma predição futurista, e falsa se construída como uma alegação sobre necessidade metafísica.

Há muitas coisas erradas com a sociedade fictícia que Huxley descreveu. Ele é estática, totalitária, vinculada a castas; sua cultura é uma terra devastada. Os habitantes do admirável mundo novo eles mesmos são um grupo desumanizado e sem dignidade. E ainda assim pós-humanos eles não são. Suas capacidades não são sobre-humanas, mas sim de muitas formas substancialmente inferiores às nossas próprias. Sua expectativa de vida e físico são bem normais, mas suas faculdades intelectuais, emocionais, morais e espirituais são podadas [stunted]. A maior parte dos habitantes do admirável mundo novo tem vários graus de retardo mental engendrado. E todos, salvo os dez controladores do mundo (junto com uma miscelânea de primitivos e excluídos sociais que estão confinados a reservas cercadas ou ilhas isoladas), são impedidos ou desencorajados de desenvolver uma individualidade, pensamento e iniciativa independente, e estão condicionados a não querer essas características para início de conversa. Admirável Mundo Novo não é um conto de aprimoramento humano que deu errado, mas sim uma tragédia de tecnologia e engenharia social, sendo usada para deliberadamente aleijar capacidades morais e intelectuais – exatamente a antítese da proposta transhumanista.

Transhumanistas argumentam que a melhor maneira de evitar um Admirável Mundo Novo é defender vigorosamente liberdade morfológica e reprodutiva contra todos aqueles pretensos controladores do mundo. A história nos mostrou os perigos de deixar o governo diminuir essas liberdades. O programa coercivo de eugenia do último século patrocinado pelo governo, tendo sido já favorecido tanto pela esquerda quanto pela direita, perdeu inteiramente seu crédito. Já que as pessoas devem provavelmente diferir em sua atitude no que concerne a tecnologias de aprimoramento humano, é crucial que nenhuma solução seja imposta de cima a todos, mas que indivíduos possam consultar suas próprias consciências sobre o que é certo para eles mesmos e para suas famílias. Informação, debate público, e educação são os meios apropriados pelos quais se pode encorajar os outros a fazerem escolhas sábias, não um banimento global em um amplo espectro de opções médicas e de aprimoramento potencialmente benéficas.

O segundo medo é que possa haver uma erupção de violência entre humanos não aprimorados e pós-humanos. George Annas, Lori Andrews, e Rosario Isasi argumentaram que nós deveríamos ver clonagem humana e modificações genéticas herdáveis como “crimes contra a humanidade” para reduzir a probabilidade de que uma espécie pós-humana surja, com base na afirmação de que tais espécies representariam um risco existencial para a espécie humana antiga:

A nova espécie, ou “pós-humana”, verá provavelmente os humanos antigos e ‘normais’ como inferiores, mesmo selvagens, e apropriados para a escravização ou para matança. Os normais, de outro lado, podem ver os pós-humanos como uma ameaça e se puderem, engajarem em um ataque preventivo matando os pós-humanos antes que sejam eles mesmos mortos ou escravizados por eles. É, em última instância, esse potencial previsível para o genocídio que faz experimentos de alteração de espécies armas de destruição em massa em potencial, e faz de engenheiros genéticos sem supervisão potenciais bioterroristas.vi

Não se pode negar que bioterrorismo e engenheiros genéticos sem supervisão desenvolvendo potentes armas de destruição em massa representam um sério perigo para a nossa civilização. Mas usar a retórica do bioterrorismo e armas de destruição em massa para conjurar difamações no uso terapêutico de biotecnologia para aprimorar a saúde, longevidade e outras capacidades humanas não ajuda em nada. Os problemas são bem distintos. Pessoas razoáveis podem ser a favor da regulação estrita de armas biológicas ao mesmo tempo em que promovem usos médicos benéficos da genética e outras tecnologias de aprimoramento humano, incluindo modificações herdáveis e ‘alteradoras de espécie’.

A sociedade humana sempre corre perigo de que algum grupo decida ver outro grupo como apropriado para a escravização ou a matança. Para agir contra essas tendências, sociedades modernas criaram leis e instituições e atribuíram a elas poderes de asseguração [enforcement], para impedir grupos de cidadãos de escravizar ou matar uns aos outros. A eficácia dessas instituições não depende dos cidadãos terem capacidades iguais. Sociedades modernas e pacíficas podem ter grande número de pessoas com capacidade física e mental pequena, junto com outras pessoas que podem ser excepcionalmente fortes fisicamente ou saudáveis e intelectualmente talentosas de várias maneiras. Acrescentar pessoas com capacidades aprimoradas tecnologicamente a essa ampla distribuição de habilidades não necessariamente partiria a sociedade ao meio ou desencadearia genocídio ou escravização.

O pressuposto de que modificações geneticamente herdáveis ou outras tecnologias de aprimoramento humano levariam a duas espécies distintas e separadas também pode ser questionado. Parece muito mais provável que haveria um contínuo de indivíduos diferentemente modificados ou aprimorados, os quais interseccionariam com o contínuo de humanos não aprimorados até então. O cenário no qual ‘os aprimorados’ formam um pacto e então atacam ‘os naturais’ serve para ficção científica empolgante, mas não é necessariamente o resultado mais plausível. Mesmo hoje, o segmento contendo os 90% mais altos da população poderia, a princípio, se juntar e matar ou escravizar o décimo [decile] mais baixo. Que isso não aconteça sugere que uma sociedade bem organizada pode se sustentar mesmo se ela contiver coalizões possíveis de pessoas compartilhando algum atributo tais que, se elas se juntassem, elas seriam capazes de exterminar o resto.

Observar que o caso extremo de guerra entre humanos e pós-humanos não é o cenário mais provável não é dizer que não há preocupações sociais legítimas sobre os passos que podem nos aproximar da pós-humanidade. Desigualdade, discriminação e a criação de estigmas – contra ou por pessoas modificadas – poderiam se tornar sérios problemas. Transhumanistas argumentariam que esses problemas sociais (em potencial) pedem por soluções sociais. Um exemplo de como a tecnologia contemporânea pode mudar importantes aspectos da identidade de alguém é a mudança de sexo. A experiência de transexuais mostra que a cultura Ocidental ainda tem muito trabalho a fazer para se tornar mais tolerante com a diversidade. Isso é uma tarefa que pode começar a ser confrontada hoje pela adoção de um clima de tolerância e aceitação com aqueles que são diferentes de nós mesmos. Pintar retratos alarmistas sobre a ameaça de pessoas do futuro tecnologicamente modificadas, ou lançar condenações preventivas sobre a sua natureza necessariamente degradada, não é a melhor maneira de dar conta disso.

E quanto ao caso hipotético no qual alguém tem a intenção de criar, ou se transformar em um ser tão radicalmente aprimorado que apenas um ou um pequeno grupo de indivíduos seria capaz de dominar o planeta? Essa claramente não é a situação mais provável de surgir no futuro próximo, mas se pode imaginar que, talvez em algumas décadas, a criação prospectiva de máquinas superinteligentes poderia trazer esse tipo de preocupação. O suposto criador da nova forma de vida com tais capacidades excedentes teria uma obrigação de garantir que o ser proposto está livre de tendências psicopatas e, de maneira mais geral, que ele tem tendências humanas. Por exemplo, um programador futuro de inteligência artificial deveria precisar fazer uma defesa de peso de que lançar uma superinteligência propositalmente amigável aos humanos seria mais seguro de que a alternativa. Mais uma vez, entretanto, esse cenário (atualmente) de ficção científica tem que ser claramente distinguido da situação atual e nossa preocupação mais imediata com tomar passos efetivos na direção do aprimoramento incremental das capacidades humanas e sua extensão de saúde.

 

A dignidade humana é incompatível

com a dignidade pós-humana?

A dignidade humana é por vezes invocada como um substituto polêmico para ideias claras. Isso não significa que não há problemas morais importantes relacionados à dignidade, mas apenas que há uma necessidade de definir o que se tem em mente quando se usa o termo. Aqui, nós iremos usar dois diferentes sentidos de dignidade:

  1. Dignidade como status moral, em particular o direito inalienável de ser tratado com um nível básico de respeito.
  2. Dignidade como a qualidade se ser merecedor ou honorável; merecimento, valor, nobreza, excelência. (Dicionário de Inglês de Oxfordivii)

Em ambas essas definições, dignidade é algo que um pós-humano poderia possuir. Francis Fukuyama, entretanto, parece negar isso e alerta que desistir da ideia de que dignidade é privilégio de seres humanos – definidos como aqueles possuindo uma misteriosa qualidade humana essencial que ele chama “Fator X” viii – seria um convite ao desastre:

Negar o conceito de dignidade humana – isso é, a ideia de que há algo único sobre a raça humana que dá direito a cada membro da espécie a um status moral maior do que o resto do mundo natural – nos levaria por um caminho perigoso. Nós podemos ser compelidos, por fim, a tomar esse caminho, mas nós deveríamos fazê-lo apenas com nossos olhos abertos. Nietzsche é um guia muito melhor do que há nessa estrada do que as legiões de bioéticos e Darwinistas acadêmicos casuais que hoje estão dispostos a nos dar conselhos morais sobre esse tema.ix

O que parece preocupar Fukuyama é que introduzir novos tipos de pessoas aprimoradas no mundo pode levar alguns indivíduos (talvez crianças, ou os mentalmente deficientes, ou humanos não aprimorados de um modo geral) a perder algo do status moral que eles possuem atualmente, e que uma pré-condição fundamental da democracia liberal, o princípio de dignidade igual para todos, seria destruído.

A intuição subjacente parece ser que em vez do famoso “círculo moral expandido”, o que nós teríamos seria mais como um oval, cuja forma pode mudar, mas a área tem que permanecer constante. Felizmente, essa pretensa lei da conservação do reconhecimento moral carece de apoio empírico. O conjunto de indivíduos aos quais um status moral completo é concedido nas sociedades Ocidentais aumentou, na verdade, para incluir homens sem propriedade ou descendência nobre, mulheres, e pessoas não-brancas. Pareceria possível estender esse conjunto ainda mais para incluir pós-humanos, ou mesmo alguns primatas maiores, ou quimeras humano-animais, se elas vierem a ser criadas – e fazê-lo sem causar qualquer redução compensadora em outra direção. (O status moral de alguns casos limite problemáticos, como fetos ou pacientes de Alzheimer no estado tardio, ou os mortos cerebralmente, deveriam talvez ser decididos separadamente do problema de humanos tecnologicamente modificados ou novas formas artificiais de vida.) Nosso próprio papel nesse processo não precisa ser o de observadores passivos. Nós podemos trabalhar para criar estruturas sociais mais inclusivas que confeririam reconhecimento moral apropriado e direitos legais para todos que precisam deles, sejam homens ou mulheres, brancos ou negros, de carne ou de silicone.

Dignidade no segundo sentido, referindo-se à excelência especial ou merecimento moral, é algo que os seres humanos atuais possuem em graus amplamente distintos. Alguns se destacam muito mais do que outros. Alguns são moralmente admiráveis; outros são baixos [base] e viciosos. Não há razão para supor que seres pós-humanos não poderiam ter dignidade nesse segundo sentido. Eles podem ser capazes até mesmo de obter níveis maiores de excelência moral e de outros tipos do que qualquer um de nós humanos obteria. Os habitantes fictícios do admirável mundo novo, que eram sub-humanos mais que pós-humanos, teriam uma pontuação baixa nesse tipo de dignidade, e parcialmente por essa razão eles seriam terríveis exemplos para nós imitarmos. Mas certamente nós podemos criar visões mais atraentes e animadoras do que nós podemos aspirar a nos tornar.  Pode haver alguns que transformariam a si mesmos em pós-humanos degradados – mas algumas pessoas hoje não vivem vidas humanas muito dignas. Isso é lamentável, mas o fato de que algumas pessoas fazem más escolhas não é de modo geral razão o suficiente para rescindir das pessoas o direito de escolher. E medidas contrárias legítimas estão disponíveis: educação, encorajamento, persuasão, reforma cultural e social. Essas, e não uma proibição generalizada de todas as maneiras pós-humanas de ser, são medidas para as quais aqueles incomodados pelo prospecto de pós-humanos degradados deveriam recorrer. Uma democracia liberal deveria normalmente permitir incursões em liberdades morfológicas e reprodutivas apenas em casos quando alguém está abusando dessas liberdades para causar dano a outra pessoa.

O princípio de que pais deveriam ter ampla discrição para decidir sobre aprimoramentos genéticos para seus filhos tem sido atacado com base em que essa forma de liberdade reprodutiva constituiria um tipo de tirania dos pais que minaria a dignidade da criança e capacidade para escolha autônoma; por exemplo, por Hans Jonas:

A natureza tecnologicamente dominada agora novamente inclui o homem o qual (até agora) tinha, na tecnologia, se posto contra ela como o seu mestre… Mas de quem é esse poder – e sobre quem ou sobre o que? Obviamente o poder desses vivendo hoje sobre aqueles que virão depois deles, que serão indefesos contra outro lado de escolhas anteriores feitas por seus planejadores de hoje. O outro lado do poder hoje é a futura submissão dos vivos aos mortos.x

Jonas está contando com o pressuposto de que nossos descendentes, que serão presumivelmente muito mais avançados do que nós somos, seriam ainda assim indefesos contra nossas maquinações para expandir suas capacidades. Isso é quase que certamente incorreto. Se por alguma razão inescrutável, eles decidissem que eles prefeririam ser menos inteligentes, menos saudáveis, e ter vidas menores, não lhes faltaria os meios para alcançar esses objetivos e frustrar os nossos desígnios.

Em todo o caso, se a alternativa à escolha dos pais em determinar as capacidades básicas de novas pessoas é confiar o bem da criança à natureza, quer dizer, ao cego acaso, então a decisão deveria ser fácil. Se a Mãe Natureza tivesse sido uma verdadeira mãe, ela teria ido para cadeia por abuso de crianças e assassinato. E transhumanistas podem aceitar, é claro, que assim como a sociedade pode em situações excepcionais se sobrepor à autonomia parental, como em casos de abuso ou negligência, também seria possível à sociedade impor regulações para proteger a criança porvir de intervenções genéticas genuinamente maléficas – mas não porque elas representam escolha em vez de acaso.

Jürgen Habermas, em um trabalho recente, ecoa a preocupação de Jonas e se preocupa que o mero conhecimento de ter sido intencionalmente feito por outro possa ter consequências ruinosas:

Nós não podemos descartar que o conhecimento de que as características hereditárias de alguém são programadas pode restringir a escolha da vida de um indivíduo, e ruir as relações essencialmente simétricas entre humanos livres e iguais.xi

Um transhumanista responderia que seria um engano que uma pessoa acreditasse que ela não tem escolha sobre sua própria vida porque alguns (ou todos) de seus genes foram selecionados pelos seus pais. Ela poderia, de fato, ter tanta escolha quanto se sua constituição genética tivesse sido selecionada por acaso. Seria até mesmo possível que ela desfrutasse de mais escolha e autonomia em sua vida, se as modificações fossem tais que expandissem seu conjunto básico de capacidades. Ser saudável, mais inteligente, ter um amplo espectro de talentos, ou possuir maiores poderes de autocontrole são bênçãos que tendem a abrir mais caminhos do que fechá-los.

Mesmo que houvesse a possibilidade de que alguns indivíduos geneticamente modificados falhassem em compreender esses pontos e, por conseguinte, se sentissem oprimidos pelo conhecimento de sua origem, isso seria um risco a ser pesado contra os riscos em que se incorre por se ter um genoma não modificado, riscos que podem ser extremamente graves.  Se alternativas seguras e de efeito estão disponíveis, seria irresponsável arriscar começar a vida de alguém com o infortúnio de capacidades congenitamente diminuídas ou uma suscetibilidade elevada a doenças.

 

Por que precisamos de dignidade pós-humana

Previsões similarmente agourentas foram feitas na década de setenta sobre o dano psicológico severo que crianças concebidas por meio de fertilização in vitro sofreriam ao saber que elas surgiram de um tubo de testes – uma predição que se revelou completamente falsa. É difícil de evitar a impressão de que algum viés ou preconceito filosófico é responsável pela prontidão com que muitos bioconservadores tomam mesmo as mais frágeis justificativas empíricas para banir certos tipos de tecnologias de aprimoramento humano, mas não outros. Suponha que tocar Mozart para mães grávidas melhoraria o talento musical subsequente da criança. Ninguém argumentaria pelo banimento de “Mozart-no-útero” com base em não podermos descartar que a criança poderia incorrer em algum sofrimento psicológico assim que ela descobrisse que sua facilidade com o violino tinha sido ‘programada’ por seus pais antes dela ter nascido. Mas quando se trata de aprimoramentos genéticos, por exemplo, argumentos que não são tão diferentes dessa paródia são frequentemente levados adiante por escritores bioconservadores proeminentes como objeções de peso, senão conclusivas. Para transhumanistas, isso parece como duplipensar [doublethink, aceitação de duas ideias ou crenças contraditórias ao mesmo tempo]. Como é possível que para bioconservadores praticamente todo lado negativo antecipado, previsto talvez com base na mais frágil teoria pop de psicologia, tão prontamente alcance o status de insight filosófico profundo e de objeção ‘nocauteante’ contra o projeto transhumanista?

Talvez parte da resposta possa ser encontrada nas diferentes atitudes que transhumanistas e bioconservadores têm no que diz respeito à dignidade pós-humana. Bioconservadores tendem a recusar a dignidade pós-humana e ver a pós-humanidade como uma ameaça à dignidade humana. Eles são, por conseguinte, tentados a buscar maneiras para denegrir intervenções que são pensadas como apontando para a direção de modificações futuras radicais que eventualmente levariam ao surgimento desses detestáveis pós-humanos. Mas a não ser que essa oposição fundamental ao pós-humano seja declarada abertamente como uma premissa de seu argumento, isso então os força a usar um duplo critério de avaliação, sempre que casos particulares são considerados isoladamente: por exemplo, um critério para intervenções genéticas germinativas [germ-line] e outro para melhoramentos na nutrição maternal (uma intervenção que presumivelmente não é vista como anunciando uma era pós-humana).

Transhumanistas, em contraste, veem as dignidades humana e pós-humana como compatíveis e complementares. Eles insistem que dignidade, em seu sentido moderno, consiste naquilo que nós somos e naquilo que nós temos o potencial de nos tornar, não em nosso pedigree ou nossa origem causal. O que nós somos não é uma função unicamente de nosso DNA, mas também de nosso contexto social e tecnológico. A natureza humana nesse sentido mais amplo é dinâmica, parcialmente feita pelos homens, e melhorável. Nossos fenótipos estendidos atuais (e as vidas que nós levamos) são marcadamente diferentes daquelas de nossos ancestrais caçadores e coletores. Nós lemos e escrevemos; nós vestimos roupas; nós vivemos em cidades; nós ganhamos dinheiro e compramos comida do supermercado; nós ligamos para pessoas no telefone, assistimos televisão, lemos jornais, dirigimos carros, pagamos impostos, votamos nas eleições nacionais; mulheres dão à luz em hospitais; a expectativa de vida é três vezes maior do que no Pleistoceno; nós sabemos que a Terra é redonda e que as estrelas são grandes nuvens de gás acesas por dentro por fusão nuclear, e que o universo tem aproximadamente 13,7 bilhões de anos e é extremamente grande. Aos olhos do caçador-coletor, nós podemos já parecer “pós-humanos”. E ainda assim a extensão radical das capacidades humanas – algumas delas biológicas, outras delas externas – não nos desfez de nosso status moral ou nos desumanizou no sentido de nos fazer indignos e degradados de um modo geral. Similarmente, caso nós sejamos, ou nossos descendentes um dia sejam, bem sucedidos em se tornar aquilo a que, em relação aos nossos padrões naturais, nós podemos nos referir como pós-humano, isso não precisa vir acompanhado de uma perda de dignidade.
Do ponto de vista transhumanista, não há necessidade de se comportar como se houvesse uma profunda diferença moral entre meios tecnológicos e outros tipos de meios de aprimorar as vidas humanas. Ao defender a dignidade pós-humana nós promovemos uma ética mais humana e inclusiva, uma que irá abarcar futuras pessoas tecnologicamente modificadas assim como humanos do tipo contemporâneo. Nós também removemos um duplo critério falseador [distortive] do campo de nossa visão moral, nos permitindo perceber mais claramente as oportunidades que existem para mais progressos humanos.xii

 

 

 

Notas

 

* Texto traduzido por Lucas Machado.
Revisado por Gustavo Rosa; e por Lauro Edison.

 

iiiiN. Bostrom et al. 2003. The Transhumanist FAQ, v. 2.1. World Transhumanist Associa-tion.

Página da Web: www.transhumanism.org/resources/faq.html. (N. do A.)

 

ii N. Bostrom. Human Genetic Enhancements: A Transhumanist Perspective. Journal of Value Inquiry 2004, forthcoming. (N. do A.)

 

iii L. Kass. Ageless Bodies, Happy Souls: Biotechnology and the Pursuit of Perfection. The New Atlantis 2003; 1. (N. do A.)

 

iv Cf. por exemplo J. Glover. 2001. Humanity: A Moral History of the Twentieth Century. New Haven. Yale University Press. (N. do A.)

 

vi L. Kass. 2002. Life, Liberty, and Defense of Dignity: The Challenge for Bioethics. San Francisco. Encounter Books: p. 48. (N. do A.)

 

vi G. Annas, L. Andrews and R. Isasi. Protecting the Endangered Human: Toward an International Treaty Prohibiting Cloning and Inheritable Alterations. American Journal of Law and Medicine 2002; 28, 2&3: p. 162. (N. do A.)

 

vii J. A. Simpson and E. Weiner, eds. 1989. The Oxford English Dictionary, 2nd ed. Oxford. Oxford University Press. (N. do A.)

 

viii F. Fukuyama. 2002. Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution. New York. Farrar, Strauss and Giroux: p. 149. (N. do A.)

 

ixiFukuyama, op cit. note 8, p. 160. (N. do A.)

 

xi H. Jonas. 1985. Technik, Medizin und Ethik: Zur Praxis des Prinzips Verantwortung. Frankfurt am Main. Suhrkamp. (N. do A.)

 

xi J. Habermas. 2003. The Future of Human Nature. Oxford. Blackwell: p. 23. (N. do A.)

 

xii Agradeço pelos comentários de Heather Bradshaw, John Brooke, Aubrey de Grey, Robin Hanson, Matthew Liao, Julian Savulescu, Eliezer Yudkowsky, Nick Zangwill, e pelas audiências no seminário de 6 de junho no Centro Ian Ramsey em Oxford, a conferência Transvision 2003 em Yale, e o Workshop da Fundação Europeia de Ciência sobre Ciência e Valores Humanos, nos quais versões anteriores desse paper foram apresentados, para dois juízes anônimos.