Os Nossos Atalhos Mentais

por Isabella Bertelli* & João Lourenço**, 2012

 

 

Este texto foi originalmente publicado na revista Psique nº 81.

 

 

O ser humano é um animal racional. Há muito tempo essa afirmação foi usada para nos diferenciar dos demais animais. Porém, recentemente tem sido cada vez mais contestada. Afinal, o que é ser racional? E somos mesmo racionais?

 

A afirmação de que o ser humano é um animal racional e isso nos
diferencia dos demais animais tem sido cada vez mais contestada

 

O modelo do ser humano racional dominou o imaginário popular por muito tempo, apesar de ter sofrido vários golpes, de diferentes extensões. Alguns exemplos são a contestação da consciência de tudo que nos acontece, dada por Freud, que tornou famosa a possibilidade de processos inconscientes ocorrerem na mente; ou a aproximação da distância (inclusive comportamental) entre nós e os outros animais realizada por Darwin, que longe de ser um abismo, era mais uma continuidade, produto da evolução por seleção natural.

 

Mais recentemente, António Damásio, famoso neurocientista, publicou o importante livro O Erro de Descartes, em que afirma que as emoções fazem parte do nosso processamento de informações normal e que, sem elas, ocorre um afastamento muito maior do comportamento considerado racional. Vários estudos na área de Psicologia Social indicaram que o comportamento das pessoas quando estão em grupo pode ser distante do considerado razoável.

 

Kahneman e Tversky foram os pesquisadores mais notáveis na área da racionalidade (ou melhor, falta dela) no processamento de informações. Os autores inauguraram uma área conhecida como Heurística e Vieses, e por ela Kahneman ganhou o prêmio Nobel de economia em 2002, seis anos após a morte de Tversky.

 

Seus estudos foram feitos no contexto da economia, área que se interessava pela tomada de decisão, ou seja, como que os seres humanos optavam por certas decisões em face de situações incertas. Antes dos estudos de Kahneman e Tversky, cujo início se deu na década de 70, predominava a ideia de que sempre tomávamos atitudes racionais, ou seja, que nos levavam ao maior montante de dinheiro, por exemplo.

 

Kahneman e Tversky confrontaram a tese de
que sempre tomávamos atitudes racionais

 

Esses autores foram modificando essa noção de funcionamento humano e mostraram que, no processamento de informações, muitas vezes utilizamos “atalhos” ou heurísticas, que quando utilizados sistematicamente nos levam a tomar uma decisão equivocada, e são chamados de vieses. São vieses cognitivos, porque ocorrem no processamento mental de informações do ambiente. Apesar de influenciarem no comportamento econômico, na verdade atuam a todo o momento, fazendo parte de como funcionamos.

 

E o que seria um viés cognitivo, nessa área de estudos? Os autores estudaram e nomearam vários deles, e a lista foi aumentada por outros pesquisadores e continua crescendo. A seguir, vamos fazer algumas perguntas simples e mostrar se a resposta mais usual estaria ou não enviesada, de acordo com as pesquisas na área de vieses cognitivos. Em seguida, delinearemos qual o processo tido como mais provável por trás desse possível enviesamento, e, ao fim, sugeriremos estratégias de como corrigi-lo. É um exercício interessante pensar um pouco na sua resposta pessoal para cada pergunta antes de continuar a leitura.

 

 

Na ponta da língua

 

Qual tipo de palavra inglesa é mais frequente, a que começa com R ou a que tem R como terceira letra? Nosso cérebro imediatamente começa a varrer as possibilidades nos dois grupos. Com R inicial teríamos: red, right, road, room, RAM, reboot e assim por diante. Enquanto que no outro grupo temos: dirty, turbo, e a partir daí fica difícil lembrar de mais casos.

 

O que é mais perigoso, ter o hábito de toda noite andar num beco escuro ou ser caseiro e sedentário?

 

 

Andando num beco escuro, à noite, você pode ser assaltado, roubado ou sequestrado, e a cada canto escuro da rua e das construções dos arredores parece surgir uma nova ameaça. Por outro lado, ficar em casa a maior parte do tempo parece trazer à mente poucos cenários arriscados. Apesar de esses raciocínios parecerem plausíveis, ambos chegam a conclusões falsas.

 

A letra R aparece na terceira posição de palavras em inglês mais do que na primeira. Ter uma vida sedentária é o maior fator de risco de morte existente (excluindo-se fumar cigarro), enquanto mortes por homicídio são proporcionalmente baixas. O viés subjacente a erros como esse é extremamente recorrente e ficou conhecido como Viés da Disponibilidade.

 

É muito mais fácil lembrar de palavras que se iniciam com R do que as que têm sua terceira letra como R. Como consequência, a maioria das pessoas considera as palavras que se iniciam com R como mais frequentes. Analogamente, os riscos de um beco escuro à noite são muito mais vívidos na nossa mente do que os advindos de uma maior probabilidade de morte futura, consequente de certo hábito inofensivo no curto prazo, como ser sedentário.

 

Uma diminuição da ocorrência de um evento no nosso horizonte imediatamente acessível à memória nos faz, automaticamente, assumir que esses eventos ocorrem na mesma proporção em que são acessíveis. A disponibilidade de um dado na nossa memória não é um indicativo claro de sua frequência. A primeira, a disponibilidade mental, é uma condição epistêmica e computacional de um cérebro moldado pela evolução para lidar com um mundo no qual, por exemplo, a taxa de homicídio (evitável) era muito maior que a de infarto (inevitável). A segunda, a frequência real, é um fato a respeito do mundo.

 

 

Probabilidades

 

Que probabilidade alguém deveria atribuir a que uma enchente inunde uma hipotética cidade? Qual probabilidade alguém deveria ter atribuído que uma enchente inunde essa mesma cidade, depois de saber que a cidade foi de fato inundada? Em nossas mentes, a segunda probabilidade é sempre considerada como sendo maior do que a primeira, quando elas deveriam ser sempre iguais. Sempre que um evento anteriormente inesperado ocorre, nós o classificamos como provável em retrospecto.

 

O acidente em Fukushima foi uma das tragédias citadas na pesquisa.
Os entrevistados acham que poderia e deveria ter sido evitada

 

O acidente em Fukushima, a última crise financeira e as milhões de mortes ocasionadas pelos tsunamis na Ásia foram todas consideradas pelo publico geral como tragédias que poderiam e deveriam ter sido evitadas. Não conseguimos nos ater ao fato de que, na época, não tínhamos informações suficientes para saber com segurança sobre a probabilidade de qualquer um destes eventos. Essa tendência de sempre dizer que um evento improvável deveria ter sido tido como provável, depois de tomar conhecimento do acontecimento do evento, é conhecido como Viés da Retrospecção.

 

Uma série de eventos foi descrita para três grupos distintos. Para dois desses grupos foi dito que depois desta série de eventos um evento específico ocorreu, enquanto que para o grupo restante, não. Mesmo sendo instruídos para avaliar qual a probabilidade do evento específico ocorrer da perspectiva de alguém posicionado antes da ocorrência do evento, os grupos que sabiam do evento atribuíram uma probabilidade dez vezes maior para o mesmo.

 

É necessário julgar quão provável era a probabilidade de um evento, partindo das condições epistêmicas da época e não com base no nosso conhecimento atual. Vendo a história através das lentes desse viés, nós, vastamente, subestimamos a ocorrência de eventos que agora parecem improváveis, pois temos a tendência a acreditar que um evento que ocorre, necessariamente, seria avaliado como provável na época anterior à ocorrência. Ao fazer isso nós superestimamos o custo de nos prevenir para uma catástrofe improvável. Isso nos leva ao próximo viés.

 

Um investimento que rende R$10,00 em 98% das vezes, mas perde um milhão de reais em 0,2% dos casos é um investimento ruim? Apesar de perder muito, o risco é extremamente baixo e, no geral, o investimento é uma fonte de lucro constante. No entanto, isso claramente não é o caso após calcularmos as perdas e ganhos totais ([10 x 0,98] – [1.000.000 x 0,002] = –1990,2). Nós tendemos a ignorar riscos de probabilidade pequena, mas que tenham perdas muito altas. Essa tendência se tornou conhecida como Viés dos Cisnes Negros. Ela se manifesta mesmo em casos mais complexos analisados por grandes especialistas no assunto, um dos inúmeros motivos da última crise econômica americana. Devemos dar mais atenção a riscos pequenos de danos muito altos. E, se possível, calcular de fato as probabilidades em vez de se guiar por intuições.

 

A sequência 2-4-6 obedece a uma regra, qual é ela? Posso dizer se outras sequências obedecem à regra, quais sequências você deve perguntar para testar sua hipótese? Alguém que forma a hipótese “Os números estão aumentando +2” deve testar as triplas 8-10-12 ou 20-22-24, concluir que elas se ajustam à hipótese e anunciar a regra. Alguém que forme a hipótese “X-2X-3X” deve testar a tripla 3-6-9, concluir que ela confirma a hipótese e anunciar a regra. No entanto, nenhuma dessas regras se adéqua à sequência como um todo, que apenas obedece à regularidade de ser crescente.

 

Para testar uma regra devemos buscar evidências contrárias a ela. Se formo a hipótese da regra +2, devo testar sequências cuja resposta afirmativa possa eliminar a minha hipótese por completo, e não sequências cuja afirmativa deixe outras hipóteses mais simples em aberto.

 

É uma boa ideia tentar desconfirmar a hipótese para se chegar a uma resposta mais aproximada. Tentamos sempre confirmar a nossa hipótese em vez de falsificá-la. Mesmo quando somos apresentados a um conjunto completo de evidências contrárias e favoráveis, tendemos a selecionar apenas as favoráveis, numa manifestação do Viés da Confirmação. Dois pensadores, sob a influência deste viés, irão considerar a mesma sequência de evidências, mas modificarão as suas crenças em sentidos contrários – ambos irão aceitar, seletivamente, apenas a evidência favorável. Ou seja, o Viés da Confirmação pode tornar a pessoa completamente cega aos dados. Devemos buscar evidências contrárias a nossa teoria, e não a favor.

 

 

Resposta enviesada

 

Existem mais ou menos do que 500 pessoas num raio de 100 m a sua volta? Alguém num lugar não muito cheio pensará: “500 é muito alto! Menos”. Quantas pessoas existem num raio de 100 m a sua volta? Seja lá o que você pensou, a sua resposta vai ser incorrigivelmente enviesada pelo número 500 – um número aleatório que os escritores dessa matéria resolveram colocar na pergunta, sem qualquer relação com o número de pessoas que existe em um raio de 100 m. Sujeitos a quem se pergunta, inicialmente, se o número de países africanos na ONU é maior ou menor do que 15, geraram, posteriormente, estimativas bem menores do que aqueles a quem foi perguntado se esse número era menor ou maior que 65.

 

Esses indivíduos tomaram o número inicial como seu ponto de partida, ou âncora, e, então, ajustaram o número para cima ou para baixo até alcançarem uma resposta que lhes parecesse razoável e, então, pararam de ajustar. Como resultado, a estimativa foi contaminada por um número totalmente aleatório sem nenhuma relação com a pergunta. Os números 15 e 65 tinham sido gerados aleatoriamente por uma roleta, e isso foi informado aos participantes. A tendência a calibrar o valor absoluto de sua resposta por lastros aleatórios apresentados anteriormente foi chamada de Viés da Ancoragem. A saída para não cair nele é não usar um valor de referência não informativo para se perguntar a magnitude de algo, porque a sua resposta será invariavelmente contaminada pelo valor.

 

Antes de passar ao próximo viés, vamos iniciar uma pequena brincadeira de memorização. Leia esta lista de palavras: cadeiras, mesa, toalha, talheres, copos, taças, canecas, prateleira, cafeteira, pia, freezer, microondas, lixeira orgânica, lixeira de recicláveis, torneira, lavadora de pratos. Mais para frente, veremos como você se lembra dela. (Não vale voltar aqui como cola!)

 

Você está sentado confortavelmente no seu computador lendo artigos sobre saúde, enquanto toma o seu café matinal. Você se depara então com um artigo sobre uma pesquisa que revela uma incidência de infartos 10% maior nos usuários de café.

 

Passados alguns meses, já tendo se esquecido da notícia, você está novamente tomando seu café matinal no computador quando chega um e-mail trágico e triste lhe informando que um amigo íntimo seu morreu de infarto, sendo a causa uma hipertrofia ventricular esquerda, agravada pelo uso do café. Em quais das duas situações você ficaria mais receoso em continuar a beber seu café matinal? Obviamente, a reação instintiva no primeiro caso é nula, enquanto que no segundo pode envolver até jogar sua xícara imediatamente no chão e se livrar de todo o pó de café existente na casa.

 

Não só isso, mas se o referido artigo de saúde dissesse que a incidência de infartos passava de 1 pessoa em 100 para 10 pessoas em 100 com o uso do café, sua resposta de abandonar o uso do café poderia ter sido maior. As pessoas tendem a não atualizar suas crenças de maneira correta quando os dados são apresentados em termos de porcentagens ou probabilidades absolutas (10%, 0,01…). Mas, quando os dados são apresentados em termos de ocorrências (1 pessoa em cada 10), a atualização se torna mais próxima da correta.

 

Ocorrências

 

Evoluímos para aprender sobre a realidade com base em ocorrências e não em números abstratos. Absorvemos muito melhor a informação sobre um risco se sabemos de pessoas que sofreram esse risco, mas não se lemos uma pesquisa. Em geral, as pesquisam científicas envolvem um número grande de participantes, realizam o controle de outras variáveis e fazem uma análise estatística cuidadosa. Este viés cognitivo foi chamado de Viés do Formato Estatístico. Nosso cérebro está programado para aprender que algo não é seguro se descobrimos sobre alguém que sofreu os efeitos maléficos da substância, não se vemos um número abstrato escrito em alguma pesquisa.

 

Qual o nível de habilidade média dos seus familiares em: jogar futebol, cozinhar e de realizar baliza? Qual sua habilidade em cada uma delas? Participantes foram instruídos a avaliar qual era o perfil médio de membros de um grupo no qual estavam com respeito a uma lista de habilidades. Em seguida, foram requisitados para avaliar a si próprios com relação a essa média. Em geral, todos os participantes do grupo avaliaram a média mais ou menos corretamente, no entanto quase todos se avaliaram como acima da média – mesmo a média sendo definida, justamente, como o perfil mais representativo da amostra.

 

Temos uma tendência sistemática de nos considerar melhor do que a média, com respeito a alguma habilidade ou capacidade. Essa tendência foi denominada Viés do Excesso de Confiança. Esse viés também pode se manifestar naquele caso do personagem lendo o artigo de saúde sobre café, e em outros casos semelhantes, quando o indivíduo se considera um ponto fora da amostra e que para ele o café não fará mal e ele não estará naquele grupo de infortunados que sofrem infarto. Ou que ele não fará parte da esmagadora maioria de pessoas que sofre com obesidade e diabetes em função dos hábitos alimentares

 

Digno de maior atenção ainda é o fato de que esse viés faz com que muitas pessoas se considerem imunes aos vieses e falhem em corrigi-los. Sempre se atente para o fato que, por uma questão matemática, você muito provavelmente faz parte da média com relação a habilidades e a vulnerabilidade a doenças e não a um pequeno grupo fora da curva.

 

Um experimentador fingiu ter um ataque cardíaco perto de grupos de uma, três, cinco ou dez pessoas. Em quais dos grupos a probabilidade dele ser atendido era maior? Acredite se quiser, no de uma pessoa! A probabilidade de o experimentador ser socorrido decaiu conforme o número de pessoas aumentou. Qual seria o mecanismo por trás desse fato estranho? Ele ocorre, porque quanto maior o grupo maior a difusão de responsabilidade entre as pessoas e menor a probabilidade de alguém se sentir responsável o suficiente para agir, numa manifestação do conhecido Viés da Apatia.

 

A probabilidade de alguém reclamar caso entre um grupo de fumantes num ambiente fechado é inversamente proporcional ao número de pessoas não fumantes. Para evitar o viés, não delegue tarefas publicamente que podem ser feitas individualmente por qualquer uma das pessoas de um grupo. É mais eficaz eleger uma única pessoa ou informar as pessoas uma a uma sobre a tarefa. E em caso de infarto ou outra necessidade de socorro iminente, aponte uma única pessoa da multidão em vez de simplesmente pedir por ajuda.

 

 

A lista

 

Quão bem você considera que se lembra da nossa lista de palavras apresentada há pouco? A lista continha alguma dessas palavras: pratos, sofá, geladeira, liquidificador? Você se lembra de onde na lista estava essa palavra?

 

Se você disse que qualquer uma dessas palavras estava na lista, você errou! Mas saiba que não está sozinho. Participantes de diversos experimentos foram apresentados a uma longa lista de palavras relacionadas a um único tema pontual – que, no nosso caso, eram objetos presentes na cozinha.

 

Em seguida, foram perguntadas se uma palavra específica relacionada ao tema, que não estava na série, estava ou não na série. A grande maioria dos participantes não só afirmou que a palavra estava na série como inventou uma memória episódica sobre qual palavra veio depois e antes da palavra perguntada. Essa tendência é conhecida como Viés da Memória Fabricada. Esse viés é tão forte e se manifesta numa variedade tão grande de situações que, atualmente, não existe nenhum método experimental conclusivo para diferenciar memórias fabricadas de verdadeiras.

 

Quão bem você jogava futebol há 10 anos? E nos últimos anos? E hoje? Muito provavelmente sua resposta foi diferente em ao menos um dos casos, e altamente influenciada pelo seu atual estado emocional. Se perguntadas sobre suas características (como traços de personalidade, habilidades cognitivas, habilidades motoras, etc.) de um passado imediato as pessoas tendem, imediatamente, a dizer que elas são as mesmas características que as atuais.

 

Quando questionadas sobre suas características do passado remoto, as pessoas tendem, imediatamente, a dizer que elas mudaram em relação às atuais. Quando infelizes, as pessoas tendem a avaliar as características suas no passado como melhores que as atuais. Quando felizes, as pessoas tendem a avaliar características suas no passado como piores que as atuais. Apesar de tudo isso, o que se observa é que características pessoais mudam muito pouco ao longo do tempo. Essas tendências de supor uma mudança que não existe são chamadas de Viés da Mudança. Tenha sempre em mente que você e os outros mudam pouco com o tempo, e que como você se sente no presente pode te levar a superestimar ou subestimar o passado. E o futuro também, mas este é um viés para outra matéria.

 

Os vieses cognitivos são persistentes e nos levam a conclusões intuitivamente certas, mas que nem sempre resistem a uma análise mais cuidadosa. Contudo, os vieses são mesmo falhas de raciocínio que ocorrem em nossa mente? Essa visão foi contestada por diversos autores. Um dos mais conhecidos foi Herbert Simon, que trouxe a noção de racionalidade limitada. Nela, nossa mente não é considerada um processador de informações perfeito, pelo contrário, está sujeita a limitações e faz o melhor que pode dentro desse cenário, gerando, às vezes, os vieses cognitivos.

 

Temos limitações variadas, como falta de acesso a todas as informações necessárias para se avaliar uma situação, nosso sistema perceptual não é capaz de captar todos os aspectos do ambiente, temos uma quantidade limitada de energia para gastarmos com a cognição etc. Enfim, essas limitações nos levam a utilizar, muitas vezes, uma quantidade mínima de recursos cognitivos para que encontremos uma saída satisfatória, mas não perfeita de acordo com o modelo da racionalidade clássica, para nossos problemas. Essa noção ficou conhecida também como fast and frugal, porque corresponderia a um tipo de processamento mental rápido, econômico e simples e oposto a um processamento mais lento, cuidadoso e eficaz, que, contudo, consumiria muito tempo e energia, sendo menos comum.

 

O conceito de racionalidade de Simon trouxe mais realismo a como nossa cognição funciona, diferentemente do modelo de ser humano racional clássico, que pressupunha um funcionamento lógico-utilitário, que aproximava a mente de um processador de informações perfeito para atingir objetivos. Ainda assim, não abandona totalmente esse modelo, já que coloca atenuantes, como o limitado acesso a informações, para justificar o não funcionamento perfeito de nossa mente.

 

Uma visão mais real e naturalista de nosso funcionamento cognitivo pode ser encontrada, considerando a evolução da nossa espécie. O ser humano é mais uma espécie animal, que evoluiu naturalmente tendo que resolver dilemas típicos da espécie, como encontrar comida, parceiros sexuais, conviver em grupo, se defender de predadores, identificar traidores no grupo, se proteger de outros grupos, etc. Esses problemas que tivemos que enfrentar em nosso passado evolutivo moldaram nossa mente, de modo que o objetivo do nosso processador de informações não é atingir a verdade em si, mas se sair bem em situações com que a espécie tipicamente se depara.

 

Um paralelo pode ser feito com nosso sistema visual, que não funciona como uma câmera registrando o mundo como ele é, mas apresenta as denominadas ilusões óticas; porém elas normalmente levam a uma maior adaptação ao mundo e raramente causam problemas sérios. Assim, a denominação ilusões visuais pode ser criticada, porque sugere uma distorção, quando na verdade o que nosso sistema visual faz é uma interpretação do ambiente que é vantajosa para nossa espécie, e não pode ser considerada uma distorção, porque não há um modelo ao qual se comparar. A comparação com uma câmera de filmagem é pobre, afinal o objetivo da câmera ao filmar é diferente dos propósitos de um ser vivo de certa espécie ao enxergar.

 

Ilusão de óptica: vendo movimento onde não há. Falha visual?
Ao contrário: este é um efeito colateral de o sistema visual
interpretar de forma correta as sombras do mundo real.

 

 

O passado da mente

 

O ponto de partida para entender como a mente funciona pode ser refletir sobre o que ela evoluiu para fazer adequadamente. Somos uma espécie muito social, portanto é esperado que consigamos resolver problemas relacionados à vida social, como detecção de trapaceiros, avaliação de interesse de um parceiro sexual, compreensão e respeito à hierarquia social, identificação de pessoas de fora do grupo, etc. As pesquisas na área de Psicologia Evolucionista têm indicado que somos bons nesses campos, que representam domínios ecológicos válidos, ou seja, situações que tivemos que enfrentar no ambiente de adaptação evolutiva.

 

Já nas pesquisas do campo da Heurística e Vieses, alguns dos vieses identificados representam situações artificiais. Por exemplo, nos experimentos sobre probabilidade, os participantes têm demonstrado um desempenho muito distante com relação ao que seria matematicamente correto. Porém, as pesquisas costumam envolver situações artificiais, que pouco tem a ver com os problemas que fomos selecionados para resolver.

 

Portanto, normalmente os estudiosos não consideram o contexto ambiental em que o processamento de informações foi selecionado naturalmente, assim o julgamento do que é ou não uma decisão racional se torna pouco acurado. Os humanos existem e funcionam em um ambiente e, sob essa perspectiva, os vieses não são erros graves de uma mente irracional, mas são processamentos que, normalmente, levam soluções adequadas, quando verificadas as situações naturais em que ocorrem.

 

Steven Pinker nos lembra que muitos vieses nos trazem mais vantagens do que desvantagens. Por exemplo, existe um viés tipicamente masculino em superestimar o interesse sexual das mulheres por eles. Em muitos casos, o homem estará errado. Porém os casos em que estiver certo compensam em termos evolutivos, afinal ele perderia chances de reprodução se não percebesse o interesse da mulher. Outro viés é o dos apaixonados, que acreditam que o alvo de sua paixão é uma pessoa acima da média, sem defeitos. É um viés importante para a aproximação e união do casal. No viés em que os membros de um grupo acreditam que seu grupo é melhor do que os demais, observamos uma vantagem de união desse grupo.

 

Existe um viés tipicamente masculino, que faz com que os
homens superestimem o interesse sexual das mulheres por eles.

 

Portanto, os vieses aparecem em vários tipos de situação. Em alguns, eles podem resultar em consequências mais maléficas e, em outras, mais benéficas. Hoje em dia, temos acesso a pesquisas de qualidade e a fontes de informação diversificadas que podem nos fornecer dados mais precisos sobre a situação de interesse. Podemos, assim, contar com um bom auxílio na hora de tomar decisões, e não apenas contar com nosso processador de informações, que costuma estar enviesado e pode nos distanciar de conseguir nossos objetivos.

 

 

 

 

 

Notas

 

* Isabella Bertelli: graduada e mestre em Psicologia pela USP e analista de treinamento em uma consultoria de aprendizagem organizacional. Blog sobre Psicologia: cienciaemente.blogspot.com.

 

** João Lourenço: mestrando em Filosofia da Mente pela USP. Estuda vieses cognitivos e os aspectos éticos de aperfeiçoar a cognição humana por meio da tecnologia. Fundador da ONG Instituto Ética, Racionalidade e Futuro da Humanidade: ierfh.org.

 

 

Referências

 

POHL, Rüdiger (orgs.) “Cognitive Illusions: A Handbook on Fallacies and Biases in Thinking, Judgement and Memory”. Psychology Press, 2005.

 

BUSS, David(orgs.). “The Handbook of Evolutionary Psychology”. Wiley, New Jersey. 2005

 

KANHEMAN, Daniel (orgs.) “Heuristics and Biases: The Psychology of Intuitive Judgment”. Cambridge University Press, 2002.

 

___________, Daniel (orgs.) “Choices, Values, and Frames”. Cambridge University Press; 1ª edição. 2000.

 

___________, Daniel. “A Psychological Perspective on Economics”. The American Economic Review, Vol. 93, No. 2 . 2003.

 

___________, Daniel e TVERSKY, Amos. “Extensional versus intuitive reasoning: The conjunction fallacy in probability judgment”. Psychological Review, 90: 293-315. 1983.

 

___________, Daniel. “Economic Analysis and the Psychology of Utility: Applications to Compensation Policy”. The American Economic Review, Vol. 81, No. 2. 1991.

 

___________, Daniel. “Loss Aversion in Riskless Choice: A Reference-Dependent Model” The Quarterly Journal of Economics, Vol. 106, No. 4 (Nov., 1991), pp. 1039-1061. 1991.