Por que a verdade? E…

de Eliezer Yudkowsky, 2006*

 

Alguns dos comentários nesse blog [o autor se refere ao blog lesswrong.com, onde ele escreve seus textos] tocaram na questão de por que nós deveríamos buscar a verdade (felizmente, não muitos questionaram o que é a verdade). Nossa motivação formadora para configurar os nossos pensamentos para a racionalidade, que determina se uma dada configuração é “boa” ou “ruim”, vem de qualquer que seja o motivo para nós querermos descobrir a verdade, para início de conversa.

Está escrito: “A primeira virtude é a curiosidade”. A curiosidade é uma razão para buscar a verdade, e pode não ser a única, mas ela tem uma pureza especial e admirável. Se a sua motivação é a curiosidade, você irá atribuir prioridade para suas questões de acordo com como as questões, elas mesmas, provocam o seu senso estético pessoal. Um desafio mais complicado, com uma maior probabilidade de falha, pode valer mais o esforço do que um mais simples, só porque é mais divertido.

Algumas pessoas, eu suspeito, podem objetar que a curiosidade é uma emoção e, por conseguinte, “não é racional”. Eu rotulo uma emoção como “não-racional” se ela se apoia em crenças equivocadas, ou melhor, em uma conduta epistêmica irracional: “Se o ferro se aproxima de seu rosto, e você acredita que ele seja quente, e ele é frio, o Caminho se opõe ao seu medo. Se o ferro se aproxima de seu rosto, e você acredita que ele esteja frio, e ele está quente, o Caminho se opõe a sua calma”. Inversamente, então, uma emoção que é evocada por uma crença correta ou pelo pensamento epistemicamente racional é uma “emoção racional”; e essa é a vantagem de nos deixarmos ver a calma como um estado emocional, em vez de como o padrão privilegiado. Quando as pessoas pensam sobre “emoção” e “racionalidade” como opostos, eu suspeito que eles estão, na verdade, pensando sobre o Sistema 1 e o Sistema 2 – juízos perceptivos rápidos e juízos deliberativos lentos. Juízos deliberativos não são sempre verdade, e juízos perceptivos não são sempre falsos; então é muito importante distinguir essa dicotomia da “racionalidade”. Ambos os sistemas podem servir para a meta da verdade, ou prejudicá-la, de acordo com como são usados.

Além de pura curiosidade emocional, quais outros motivos há para desejar a verdade? Bom, você pode querer realizar algum objetivo específico do mundo real, como construir um avião e, por conseguinte, você precisa saber algumas verdades específicas sobre aerodinâmica. Ou, mais mundanamente, você quer achocolatado, e, logo, precisa saber se o supermercado local tem achocolatado, para que você possa escolher ou ir para lá ou para outro lugar. Se essa é a razão de você querer a verdade, então a prioridade que você atribui para as suas questões irá refletir a utilidade esperada da informação delas – o quanto as respostas possíveis influenciam as suas escolhas, o quanto as suas escolhas importam, e o quanto você espera encontrar uma resposta que mude sua escolha padrão.

Procurar a verdade meramente por seu valor instrumental pode parecer impuro – nós não deveríamos desejar a verdade por ela própria? – mas tais investigações são extremamente importantes porque elas criam um critério de verificação exterior: se o seu avião cai do céu, ou se você vai à loja e não encontra achocolatado, isso é uma dica de que você fez algo de errado. Você recebe feedback sobre quais modos de pensar funcionam, e quais não funcionam. A curiosidade pura é algo maravilhoso, mas pode não se ocupar muito em verificar suas respostas, uma vez que o mistério atrativo tenha desaparecido. Curiosidade, como uma emoção humana, tem estado presente desde muito antes dos gregos antigos. Mas o que colocou a humanidade firmemente no caminho da Ciência foi perceber que certos modos de pensar desvelaram crenças que nos permitem manipular o mundo. No que diz respeito à curiosidade, tecer contos de fogueira sobre deuses e heróis também satisfez esse desejo igualmente bem, e ninguém se deu conta de que qualquer coisa estivesse errada com isso.

Há motivos para buscar a verdade além de curiosidade e pragmatismo? A terceira razão que eu consigo pensar é a moralidade: você acredita que buscar a verdade é nobre e importante e vale a pena. Embora tal ideal também atribua um valor intrínseco à verdade, ele é um estado mental bastante diferente de curiosidade. Estar curioso sobre o que está atrás da cortina não é a mesma sensação de acreditar que você tem um dever moral de olhar lá. No último estado mental, é muito mais provável que você acredite que outras pessoas deveriam também olhar atrás da cortina, ou castigá-las se elas deliberadamente fecharem seus olhos. Por essa razão, eu também rotularia como “moralidade” a crença de que a busca pela verdade é pragmaticamente importante para a sociedade, e, por conseguinte, é incumbente como um dever para todos. Suas prioridades, de acordo com essa motivação, serão determinadas por seus ideais sobre quais verdades são mais importantes (não mais úteis ou mais intrigantes); ou por seus ideais morais sobre quando, em que circunstâncias, o dever de buscar a verdade é o mais forte.

Eu tendo a suspeitar da moralidade como uma motivação para racionalidade, não porque eu rejeito o ideal moral, mas porque é um convite para a confusão. É muito fácil adquirir, como deveres morais aprendidos, modos de pensar que são terríveis erros de passo na dança. Considere o Sr. Spock do Star Trek, um arquétipo ingênuo de racionalidade. O estado emocional do Spock está sempre definido para “calmo”, mesmo quando isso é absurdamente inapropriado. Ele frequentemente oferece muitos dígitos significativos para probabilidade que são grosseiramente descalibradas (por exemplo, “Capitão, se você mover a Enterprise diretamente para dentro desse buraco negro, nossa probabilidade de sobreviver é apenas 2,234%”, mas nove em dez vezes a Enterprise não é destruída. Que tipo de tolo trágico dá quatro dígitos significativos para um número que está errado por duas ordens de magnitude?). Ainda assim, essa imagem popular é como muitas pessoas concebem o dever de ser “racional” – não é de se surpreender que elas não o abracem com toda vontade. Fazer a racionalidade um dever moral é dar a ela todos os terríveis graus de liberdade de um costume tribal arbitrário. As pessoas chegam à resposta errada e então, indignadas, protestam que elas agiram com propriedade, em vez de aprender com o erro.

E, ainda assim, se é para nós melhorarmos nossos talentos de racionalidade, indo além dos padrões de desempenho definidos pelos caçadores-coletores, nós precisaremos de crenças deliberadas sobre como pensar com propriedade. Quando nós escrevemos nossos programas mentais para nós mesmos, eles começam no Sistema 2, o sistema deliberativo, e apenas lentamente – se em algum momento – são treinados em nosso circuito neural que subjaz ao Sistema 1. Então, se há certos tipos de pensamento que nós descobrirmos que nós queremos evitar – como, digamos, vieses – isso será representado, dentro do Sistema 2, como uma injunção para não pensar dessa forma; um dever professado de evitá-los.

Se nós queremos a verdade, nós podemos obtê-la mais efetivamente pensando de certas maneiras, em vez de outras; e essas são as técnicas de racionalidade. Algumas dessas técnicas de racionalidade envolvem superar uma certa classe de obstáculos, os vieses…

 

(Continua no próximo post, O que é um viés, mesmo?)

 

 

Notas

 

* Texto traduzido por Lucas Machado. Revisado por Lauro Edison. O original pode ser lido aqui: http://lesswrong.com/lw/go/why_truth_and/